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É pelo século xii que esta crea- ç3o do génio do oriente apparece na Europa, imi- tada na Disciplina Clericalis de Moysés Sephardi, conhecido depois da sua conversão ao christianiâ- ma com o nome de Petrus Âlphonsus. Â Disciplina Clericalis, escripta em latim bárbaro, para ensino dos clérigos, compõe-se de trinta e sete contos e VI apophtegmas, que o auctor imagina dados por um árabe a seu filho na hora da agonia. A populari- dade do livro foi dispondo os ânimos para a cultura d'esta forma litteraria. O Conde de Lucanor de D. João Manuel, algu- mas das ficções do Gesta Romanorum, o Decame- ron de Boccacio, as Cartas de Cantorbery, ressen- tem-se bastante do livro do judeu convertido de Huesca ^ Uma creação do génio céltico e germânico é o mundo feério ; elaborada lentamente na phantasia popular, animada tfesses typos de Melusina, Morgane e Urgante, dos trovadores da edade média, cantada depois nos galanteios de Boiardo e Ariosto, Spen- cer e Shakespeare, tornou-se o divertimento in- fantil dos Contes blens, os contos de fadas, coUigi- dos nas Notti piacevoli de Straparole, publicadas no século xvi, e no Pentamerone de Giam battista Basile em 1637 K O conto é a forma litteraria da legenda. Bocca- cio no Decameron, tfaquellas transições instantâ- neas do ridículo ao pathetico, revela uma face pro- funda da historia, o estado dos espíritos na terrível < Tícknor, Uíst. da Litter. flesp. pag. G8, not. 3. * Alfred Maury^ Fées du Mayea-age, pag. 101. vil peste de 1348. A imaginação éra tão perigosa como o contagio ; a distração calculada, o prazer egoista dos jardins de Pampinea, a indifferença, o scepti- cismo que se desenvolve nas grandes calamidades, só podiam suspendel-a na sua exageração do ter- ror ^. Nos contos da edade media ha uma mistura de devoção e desenvoltura ; no Heptameron da rai- nha de Navarra, as aventuras cavalleirosas, as in- trigas de amor, os padres e monges seduzindo as noviças, entretecem-se com reflexões moraes, e de quelque leçon de la sainte Ecriture. É a mesma an« tithese fatal que parodia a exaltação religiosa nos ritos grotescos da egreja. Â edade média retratou-se em todas as suas creações, mesmo no fabliau e no conto. O conto è a passagem do fabulario para a lin- guagem da prosa, ingénua, rude, de uma franqueza maliciosa muitas vezes, e desenvolta. O conto era uma situação inventada para aproveitar um dito fe-"" liz, um repeute engenhoso dos serões das cortes e dos castellos; nasceu d'aquelle génio dramático primitivo, com que Froissart narrava a historia. Demogeot, na sua Historia da litteratura france- za^ considera os contos do século xvi, como alheios ao desenvolvimento intellectual ; è uma afiSrmação 3 Mícbelet, Hist. de Fraoce au siècl. xiy, pag. ^40- viir menos verdadeira por absoluta. ^Â actividade d'este período, a fecundidade e originalidade verdadeira- mente cahoticas reproduzeiri-se em Rabelais, o crea- dor de Gargantua e Pentagruel. A renascença com as ficções gregas" e romanas desnaturara o conto. No século xvii elle torna-se volumoso, arrebicado de galanice e galanteria ama- neirada. As attenções tinham refluido sobre os tra- balhos philosophicos, ficaram as creações imagina- tivas em poder das Gamberville, de Scudery, de La Galprenède e quejandos, que as alongaram faslidio- samente com pieguices sentimentaes, por essas se- ries indefinidas de volumes da Polexandra, Caritea Cytherea, Cassandra, Pharemundo, Ibraim ou o illustre Bassa, Artamene ou o grande Cyrus, Clelia e Almahide. Os heroes apaixonados são Anacreonte conversando em amáveis versos, Bruto e Lucrécia, Horácio Cocles e Clelia movidos pelos interesses da sociedade moderna; a magestade esculptural da an- tiguidade e da historia em presença das pequeninas intrigas amatorias tocara o cumulo do ridiculo ! O movimento, a convulsão philosophica do sé- culo xviii apparece também no romance e no conto. Lesage escalpelisa a natureza humana e o Gil Braz é a synthese das observações profundas ; o abbade IX Prevost analysa as paixões n'uma lucta intima, re- côndita e procura os sentimentos novos que scintil- lam dos que se embatem e se destroem. Manon Lescaut é uma das verdades eternas do sentimento humano, a contradição do que mais se aspira e idealisa, a vontade negando-se, mobiiisando-se nos multíplices desejos que tumultuam na alma. Vol- taire philosopba também nos seus contos. Diderot, sobretudo, a iotelligencia mais robusta do seu tem- po, matbematíco, artísta, creador pela reflexão e inspiração^ reduz ao interesse do conto, à peripécia da acção as verdades mais abstractas. Na assombrosa maravilha d'arte, o Neveu, de Ramau mostra a mal- dade disfarçada em virtude pelas conveniências; todos nos horrorisamos ao ver aUi o nosso retrato ; sentiamos aquillo, mas não tínhamos a coragem, a abnegação para dizel-o. O sobrinho de Ramau mos- tra-se infame, ao passo que é sublime de razão^ porque diz tudo o que pensa. Vê-se agitarem-se n'aquelle cérebro em ebulição todos os processos in- • tellectuaes. Na Religiosa, Diderot evoca as dores cruciantes e desconhecidas, soffridas nas trevas por um coração ingénuo, que é o ludibrio do interesse egoista, do fanatismo estúpido, e da superioridade brutal. Este conto por si é uma revolução latente. A analyse delicadíssima dos pequenos sentimentos que formam a grande luta na alma da Religiosa nao é inferior ao quadro do quietismo de Michelet no processo da Cadière, e excede por vezes a pro- fundidade com que Manzoni no Promessi Sposi re- trata as agonias da desgraçada Gertrudes no con- vento de Monza. Uma vez descobertos estes segredos do senti- mento, o conto deixou de ser individual ; o romance é o desenvolvimento de uma these da vida na so- ciedade. Richardson é a admiração de Diderot; Goethe descobre Diderot á AUemanha, traduzindo a sua obra prima ; elle mesmo isola os sentimentos do amor e o dever no Werther e chega pela arte á conclusão lógica do suicídio. Hoífmann, o caricaturista das paix(5es, de uma individualidade extravagante, nas creaçôes ^bstru- zas d'aquella imaginação de hypocondriaco deixa- Ihes o incompleto do maravilhoso ; mais tarde os editores dão aos seus contos o nome de phantastu COS. Nos contos de Hoífmann ha uma serie de ob- servações psychologicas, de impressões instinclivas que supprem a falia de imaginação ; os seus contos são o diagnostico de uma alma doente. É o lado que os torna apreciáveis, apesar do capricho e gro- XI tesco dos typos a que a mente hallacinada dà forma. Os contos de Edgar Poê, a imaginação mais extra- ordinária da America, tém o phantastico da inso- lubilidade dos problemas philosopbicos que consti- tuem a acçSo ; tocam às vezes a alta metapbysica. Tendo de transigir com as materialidades da vida, na esterilidade da indigência pede a inspiração ao álcool ; elle sente a excitação lúcida que Ibe dá a força espantosa da invenção, mas conhece já em si a tremulencia, que è a decomposição inevitável, e exclama no tédio da fadiga — Não ha peior inimigo do que o álcool I Edgar Poê é a força da imagina- ção e do ideal supplantada pelo positivismo de uma sociedade manufactureira e orgulhosa do seu cara- cter industrial; nos seus contos ha a hallucinação prophetica da doudice. A forma do conto é estudada em todas as litte- raturas da Europa; trazendo hoje a lume este pe- queno trabalho, só nos inspira a boa vontade de corresponder ao movimento que observamos lá fora. Que mais teriamos a dizer de um livro simples que lhe não desnaturasse a intenção. Coimbra. 8 de março de 1865. Thbophilo Braga. AS ItZAS BRANCAS I / Sempre o mesmo olhar (}oloroso! a mesma ex- pressão de magoa, esse abandono, que é o tédio da vida I Gomo é que na flor dos annos, quando a existência se purpúrea com todas as graças que se entrevéem apenas em sonho e se veste das alegrias que a rodeam, como uma creança «nfeitando-se dis- trabida com as florínhas do horto, tu, bella, sen* tida, deixas reflectir pela transparência de tua face pura um clarão pálido e incerto como de agonias e desespero, como a pbospborecencia de um grande mar que se agita? Diante de ti sente-se uma pres- são estranha, a mudez sagrada de uma grande flo- resta, um terror gélido, como na caverna de uma sibylla. Porque é que os teus vinte annos, as for- mas arrebatadoras do teu corpo de sylpbide, que verga pela dôr, mais languido e gentil do que uma 14 // Ij CONTOS PHANTASTICOS palmeira éolitaria embalada nas bafagens mornas vindas da amplidão remota do dezerto, como é que toda esta infância, que te cinge com uma auréola de encanto e attractivos» me faz ter medo de ti, me prende a voz temerosa e anciada, que ouza às ve- zes perguntar-te : D'onde vieste? Em que scismas? Que véo te acena 6 chama de longe? Porque te escondes dos olhos que choram de ver-te assim desolada, na conster- Raçâo de uma angustia intraduzível por palavras hu- manas? Porque não falas, e nos contas o que sof- fres? Porque te deixas ficar horas esquecidas com a mão firmada ao rosto, suspensa n'uma contem- plação divina, irradiante, de um modo, que nin- guém ousa dizer se és da terra, se és a incarnação de alguma essência arcbangelica, que anda errante no mundo a santificar o amor no soffrimento? ir Ás vezes o teu semblante, onde se pôde ler um enigma que se não traduz, tem a lividez da cera, e a claridade que parece conter em si o jaspe. En- tão julgo ver em ti uma santa, uma penitente que acha em cada suc^^go da vida uma tentação oc- ÀS AZAS BRANCAS 15 eulta nas apparencias mais risonhas» no folguedo mais descuidado e innocente, do mesmo modo que um áspide se esconde no alegrete das mais perfumadas flores ou o somno letbal na sombra da mancinetla verdejante e copada, aberta ao sol, como uma escrava sustentando a umbella com que abriga do rigor das calmas a odalisca voluptuosa. Os vinte annos são a alegria, a innocencia, a ex« pansão ;• ainda n3o viveste bastante para provar o travor amargo da vida, não sabes conhecer a tor- menta que ha de vir pela nuvem que negreja, nem a bonança pelo santelmo, nem os parceis pelo re- flexo da vaga marulhosa, nem o porto pelo per- fume embalsamado da terra. Tu passas na vida como um meteoro luminoso que não procura aonde ha de ir cair, como uma creatura somnambula que não vacilla, não hesita diante do abysmo que trans- põe, nem deixa possuir-se da attração irresistivel porque não a conhece. A vida é assim paTaHi ; pas- sas descuidada do mundo, levada na ondulação sau- dosa d'essas vozes interiores que te segredam mys- terios, mysterios que fazem sentir o desejo de voar para o alto, atè perder-se no azul. Os teus cabellos, quando os deixas ijair destran- çados sobre os hombros de jnarfim, levados pela 1^ 16 4 f/ CONTOS PHANTASTICOS brisa vespertina que vem confidenciar comtigo á ja- nella, que olha para o occidente, os teus cabellos louros, extensos, são como as cordaè de uma harpa, em que as imagens incoêrciveis de teus pensameur tos vêm falar do céo, do amor, no frémito ligeiro, quasi imperceptível d'essa vibração que só tu com- prehendes. Consternada, e muda como uma estatua, a Niobe grega, o teu silencio tem uma sublimidade prophe- tica; parece guardar a impressão do selo mais tre- mendo do Apcfcalypse, — a missão da mulher forte. III Quem sabe se é o amor que a leva assim para as solidões, como a pomba que vae esconder-se na rocha alpestre? O amor que esmalta a vida de har- monias e encantos, que acorda as virações para le- varem longe o pollen fecundante, que abre o calyce das flores para as abelhas tocarem os nectarios de- licados, que une o gemido do regato trepido com o ruido, brando ,que adormece, do canavial que orna as margens sinuosas? O amor é um abraço, a identificação ; como podia divorcial-a com a vida, mudar a sua alegria n'uma tristeza que é como o AS AZAS BRANCAS ^/ >/ !7 presenlimento do sepulchro? Àquelle segredo ia- communicavel opprime, oomo a sphinge propondo o enigma. EUa cada vez estava mais desfallecida» pendia de cansaço, offegava ; mas procurava illodir os desve^ }os da família com um vigor que não linha, como succede ao naufrago quasi a afferrar a terra, de que o refluxo da onda o afasta, e que hesita se deve lutar mais tempo, se deixar-se engolir nas vot- ragens do oceano. Gravitaria ella em volta de um mundo, em que procurasse absorver-se, e a vida da terra, de cá, fosse como o refluxo que a impel* lia para longe? Pobre flor, que se debruça nas bor- das da sepultura, será uma illuâão tudo quanto a sua grande alma sente? Serão uma mentira todas ^s harmonias que se modulam là dentro ? O tapíz verde da relva fresca, lúbrica, que a chama para vir doudejar ali n'um volteio feérico, febril, escon* der-lhe-ha o lodo de um charco estagnado que a tia de engolir para sempre? Tenho medo de vel-a assim, c^m os olhos fitos no horisonte, ii'essa morbidez do extasis ; a verti., gem pôde impellil-a, e precipitar-se, como a bor* boleta prateada e indiscreta. Â sua alma eleva-se para o céo; porque vôa tão cedo para cima a ne- 18 J y CONTOS PHANTASTICOS voa da madrugada, de uma alvura brilhante ? Â an- dorinha quando parte, voa na aza da rajada hyberoa que a empurra. Mas o mundo acarinhou-a sempre; porque se es- conde e foge d'elle? Será a reminiscência viva do foco de luz d'onde saiu, que lhe inspira tamanha anciedade, e lhe abre tfalma uma saudade tão viva^ que mata? Ás vezes está tranquilla, imiiovel, como quem ouve a toada de um concerto mavioso que embala e com que se adormece. Oh, quem ousará despertal-a? Seria perturbar a crystalisaçao de uma gota de orvalho que se transforma n'uma pérola. Outras vezes tem o olhar pávido, flrme, como quem contempla e pasma ante uma visão immensa e au- gusta. Que apparição risonha virá falar-lhe? Eros na solidão remota da noite? Será o desejo de vel-o, o desalento do impossível, que a fazem reconcen- trar assim n'essa dor? Uma lagrima era a gota do óleo aromático da alampada escondida ; em vez de fazel-o desapparecer, envolto na nuvem branca e etherea, a lagrima trazel-o-hia como um grande as- tro que leva após si myriadas de planetas. AS AZAS BRANCAS i9 IV A tarde declinava amena, festiva, com o ultimo lam- pejo d« graça que deixa preseutir jã a melancholia do outono. Emma ergueu-se da mesa ; o rosto es- tava deslumbrante de transfiguração, possuída do sentimento do infinito, que Ibe dava uma expres- são nova, excelsa, que se n3o podia fitai;, similhante á Seraphita elevada nas iliuminações swedenbor- gíanas, transpondo os precipícios icarios, inaccessi- veis dos fiords da Norwega. N'aquella tarde parecia oppressa por uma ago- nia mais intima. Segui-a, queria admiral-a na altura a que se remontava, queria que me fizesse herdeiro do seu manto propbetico, no instante em que su* bisse no carro de fogo, como Elias. E ella era como a propbetisa do deserto. Âproximei-me. Estava se- rena e plácida, como quem se mergulhara no oceano da contemplação. De mais perto vi que dor- mia, com um somno bypnotico. Ficàra-lhe um sor- riso estampado nos lábios; parecia o invólucro de uma cbrysalida mysteriosa ; a borboleta voara para a luz, abandonãra-o na terra. Tinha então um livro sobre o regaço; a mão inerte repousava sobre a pagina. Um leve signal 20 '^ /} COiXTOS PHANTASTIGOS notava uma phrase profunda em que a sua alma se absorvera : « Um anjo está presente a um outro, quando elle a deseja. » Procurei ver de quem era o livro. Era escripto por Swedenborg, o patriarcha dos videntes do norte, o que levou mais longe as relações com o mundo invisível. O livro intitulava-se : A sabedoria angé- lica da omnipotência, omnisciência, omniprezensa dos que gosam a eternidade, a immensidade de Deos. Emma acordou de súbito. Senti um estremeci- mento de terror, começava a comprehender a sua solidão. Eu mesmo tinha estudado a segunda vista, coUigido alguns phepomenos que se passavam no meu espirito, conseguira por uma excitação nervosa perenne a hypnotisação voluntária. Também no livro De varietate rerum descreve Jeronymo Cardan a faculdade que tinha de experi- mentar o extasis espontâneo, e de tornar objecti- vas as imagens creadas na sua mente : « Quando eu quero, vejo o que me apraz, e isto não só com o espirito^ mas com os olhos, como essas imagens AS AZAS BRANCAS O. '/ 21 que eu via na minha infância. Mas agora creio que ellas sao, o resultado de minhas occupações. £ certo que nem sempre tenho esta faculdade, comtudo n3o a tenho senão quando quero. As imagens que eu vejo estão sempre em movimento ; é assim que vejo as florestas, os animaes, os diversos paizes e tudo quanto eu quero ver. Creio que a causa de todos estes effeitos está na actividade da minha imaginação e n'uma vista penetrantissima. Desde a minha infância tinha de commum com Tibério Cé- sar o poder vér na obscuridade mais profunda, como em pleno dia. Porém não conservei muito tempo esta faculdade. Apesar d'isso vejo ainda al- guma coisa ; posto que não posso distinguir bem o que vejo ; e attribuo este effeito ao calor do cé- rebro, á subtileza dos espirites vitaes, ã substan- cia do olho, e á energia da imaginação. » (Lib. iv c. 43.) É esta uma qualidade vulgarissima nos povos do norte, principalmente os insulares, conhecida sob a denominação de Second sight. Ahi a imagi- nação tendo pouca novidade de paizagem que a fecunde, volta sobre si o que ha edificado e exa- géra-lhe as proporções. Por isso as theogonias do norte são terríveis. As avalanches suspensas a pre- 22 ^ ^ CONTOS PHANTASTICOS cipitarem-se, os nevoeiros diffundidos por toda a parte como um sudário immenso e frio, a aurora dos poios a desdobrar-se esplendida, tudo faz so- nhar de um mundo phantastico, escutar essas toa- das vagas, indefiníveis dos espiritos que se annun- ciam pelo ressoar de uma harpa longínqua. O dom da visão é commum ; é assim na ilha de Ferroe. Que virgens se não ostentam tfuma apparição re- pentina, e que o vidente procura, sem nunca mais poder encontral-as I Balzac, o observador profundo do coração, sentiu toda a poesia do norte no poema âe Seraphíta; é um mysterio, o enlace da philoso- phia e da poesia, um extasis indecifrável de Swe- denborg, contemplado nas fiords da Norwega. O delírio de Seraphita é o problema incessante da precepção immediata ; o seu amor é mais puro que o ideal de Dyotima, é elle que lhe dá a segunda vista. Taishatrim e Pkissichin são os nomes que ém língua gaéiica se dão aos que tem esta faculdade. Os factos observados são ínnumeros, o seu estudo é de nossos dias. Kant combateu a doutrina visio- naria de Swedenborg, mas não attendeu que este phenomeno psychico era todo sentimental; viu no patriarcba dos videntes do norte um impostor. A AS AZAS BRANCAS ^J J ÍZ vida exemplaríssima de Swedenborg, é unídesmen* tido completo e irretorqaivel aos argumentos d'esta ordem. Como explicar a inspiração continua, a segunda mta ? A alma paira entre dois mundos — o pby- sico com que se relaciona pelos sentimentos, o es- piritual com que se relaciona pelos presentimen- tos ; se é attrabida para o mundo dos corpos, pre- dominam n'dla 08 instinctos, e as sensações, todas relativas, só lhe advém pela presença dos objectos ; se a alma por um desejo vehemente se eleva do estado de anima ao de spiritm, os sentimentos désprendem-se do nexo das relações terrestres, e conhecem tudo independente das sensações. É o que acontece aos poetas, cantando a belleza de for- mas não sonhadas» a reminiscência de harmonias q3o ouvidas, VI Emma estava n'aquella tarde tSo meiga! tintia por certo a consciência de ir em breve completar-se na essência de algum anjo« As suas falas eram como suspiros. Lançou-me um olhar interrogativo, de quem temia fazer-me uma pergunta indiscreta, e receiava. Eu desconbecia-lhe aquella affabilidade »< 24 / /y CONTOS PHANTASTICOS de seraphim, costumado a vel-a sempre suspensa, no abandono do mundo, radiante como na transfi- guração do Thabor.- Apertei as mãos d'ella entre as minhas, queria tirar um som d'este instrumento celeste, cujo segredo de harmonia era só conhecido pelos anjos. Se podesse desferil-o, havia perguntar- Ihe o motivo d« tanta tristeza, a intensidade d'essa dor tão intima, tão espiritual, que se não pôde di- zer na materialidade phonica da palavra. EUa advi- nhou o meu desejo : — Tens uma vontade enérgica? — perguntou-me quasi a medo e de um modo sibyllino. Seria uma phrase abrupta para qualquer, e inintelligivel até ; eu porém que devo á actividade só d'esta faculdade tudo quanto sou, as grandes dores, os impulsos irresistíveis, as glorias, a realisação dos mais exí- guos caprichos, que a encontro na intensidade ab* soluta, que é Deus, que a vejo nos grandes factos do espirito a Religião, o Direito e a Arte ; na re- ligião manifestando-se exclusivamente na fé ; no di- reito, no accordo das vontades individuaes ; na arte, no ponto onde ellas diversíssimas se harmonisam, isto é o bello; eu, repito, comprehendi aquella in- terrogação na sua plenitude. E começava a conhe- cer mais a força da vontade, porque acabava de AS AZAS BRANCAS ^ ^\ 25 observar o resultado do acto em que a exercera* Emma fitou-me comum olhar profundo; o sem- blante era magestoso e santo, como o frontispício de uma cathedral da edade media ; as flexas, as li- nhas architectonicas a infinitivarem-se para o alto, eram os seus cabellos ; o olhar, o olhar que me op- primia n'esse instante, era mysterioso como uma ogiva sombria. Tive medo, como um neophyto, que oave mugir a caverna^ e escoar-se a brisa gélida e obrante pela fenda do penhasco, e quasi que cae em terra ,sem sentidos, ao ver attonito as convul- sões do hierophante. Emma perguntou-me se eu cria nas relações com o mundo invisível. Hesitei um instante, depois volvi : — Creio, mas nao as sei demonstrar, por uma fórmula, que, embora refutavel, tenha valor philo- sophico. — EUa ouviu-me com o pezar e serenidade de uma joven esposa na sua viuvez, que ouve o filhinho a perguntar-lhe pelo pae. Depois murmu- rou, encostando a face sobre o meu peito: — £s tio novo ainda, e porque matas em ti já o sentimento pela reflexão ? A reflexão é fria, e da terra, não comprehende sem decompor para recom- por. Como se ha de ella elevar ao simples, ao ab« soluto, que tem por attributo supremo a indivisibíli<> 26 ' ^ ' CONTOS PHANTASTICOS •*■ dade ? A luz, que é incoêrciveU Dão se espelha na face quieta do lago? O seutimeuto é assim ; só elle te pôde levar adiante das relações e das contingên- cias. A substancia é única ; esta essência d'ella 6 que prende pela unidade a multiplicidade dos attrí- butos. Todas as vezes que te absorveres na unidade que te allia como attributo ou modo á substancia, entraste na essência de todas as coisas, porque o simples que actua n'esse momento em ti, é o mesmo em tudo que existe. E continuou com palavras quasi imperceptí- veis. Estava em extasis, no extasis da abstracção, como o sentia Newton, quando determinava a es- sência de uma ordem de factos complexos, na lei que havia ficar eterna, e a que havia imprimir o seu nome. Tinha vontade de lançar-me por terra, diante d'aquelle espirito incomprehensivel ; preci- pitava-me se ella me dissesse como satanaz, quando arrebatou Jesus ao pináculo do templo, — haec om- nia tibi daho, si cadens adoraveris me. VII Quando Emma saiu da sua mudez sublime, en- costou-se sobre meus hombros com uma graça in- fantil: 7 'X" tfíste? Olha, AS AZAS BRANCAS ^-j /^) 27 — Ainda nSo sabes porque ando uma tarde, puz-me a escutar o murmúrio de um regato ; parecia-me ser uma musica interior. Tive vontade de saber o que dizia, de confidenciar com elle, de communicar minha alma, que aspirava n'uma sede de amor. Ao trepidar mavioso da vôa crystal- lina, scismava, devaneiava, enleiada, embevecida. Adheço que a pessoa de um auctor in- culcando-se na sua obra produz o effeito desagra- vei, que o senso esthetíco profundo de João Paulo nota no quadro em que o pintor coUocasse também a palheta, o cavallete e os pincéis. O valor da per- sonalidade nada è ; os antigos comprehenderam-n'a perfeitamente, quando deram o nome de persona á mascara que o actor trazia para reforçar a voz. A personalidade que se toca, serve para o trato da lua ; a individualidade, o caracter, revelado na von- tade, são para o livro, são o livro. Antes porém de fechar este parentbesis ahi vão algumas linhas sobre a pessoa do meu único e primeiro amigo, um alter ego, um fidus Achates^ como diriam dois estudante» 32 y / CONTOS t>HANTASTlCOS de sdecta. Não nos dêmos de repente. Tinhamos o mesmo nome de baptismo, fazíamos annos no mesmo dia, começámos a poetar ao mesmo tempo; a affiní* dade electiva entre nós não provinha d'estas coinci- dências ; nunca reparámos n'ellas, era uma amizade de terror, respeitavamo-nos. Na eschola fomos sem- pre antagonistas ; quando passámos a estudar latim, ficámos surprehendidos ao vermo-nos amarrados ao hora^ horae. Ainda os mesmos desforços, o mesmo orgulho. Então já nos consultávamos, sobre alguma duvida de syntaxe, como de potencia a potencia. Mais tarde encontrámo-nos sobre o mesmo banco a ou* vir as prelecções estúpidas de lógica, a lógica que nos havia tornar maus, capciosos, ergotistas. Já nao nos temíamos, éramos amigos, tinhamos necessidade um do outro. Depois vieram as confidencias eslreí- tar mais esta affeição. Foi elle o primeiro que as fez* Não sei se era amor, compaixão ou cynismo a pri- meira aventura que me contou» Era assim : « Eu tive uma prima> não sei em que grau, culpa das subtilesas cononicas. A pobre creança possuía uma morbidez voluptuosa no olhar, não os tirava de mim. A côr morena dizia tão bem com as linhas nitidaa da physionomia árabe, que ella sabia ani- mar com um ar doloroso de uma melancholia ex- o VÉO ] { ^^ pressíva, que se lhe reflectia na face i Etí ficara ór- fão de mSi, e costumara-me a brincar sósinho ; ella procarava-me na minha solidão, sentava-se junto de mim, o seu olhar incommodava-me. Tinha medo de fugir-lbe, doia-me esta indifferença ; para disfar- çal-a trepava acima das arvores carregadas de fru- ctos do pomar onde passávamos o verão, e de lâ deixava cahir aquelles que mais se douravam com os raios do sol de agosto, os que me expunham a maiores risos. Ella aparava-os no regaço com a af- fabilidade com que se queria associar ao3 meus brin* quedos. A ESTRELLA d'aLVA l / ( Í^ *7 baratbro do desespero que elle gera t Eu anfo, sim. É um amor que tem purpureado de risos todas as horas que levo a pensar n'ella. Para mim è o re- somo de todas as bellezas do mundo. Onde a vista depara uma appariçSo grandiosa, deslumbrante, ahi sinto uma reminiscência d^ella; ás vezes procuro em v3o formar na mente o composto do sem- blante engraçado, quero tel-a presente pela imagi- nação à minha idolatria ; mas a phantasia não pôde reunir em uma mesma aureola de encantos tudo quanto ha de mais puro no céo e na terra. Eu es- tou doido. É o frenesim d'este amor que me enlou- quece. Eu não a vejo, nem sei mesmo já s^ existe, mas sinto-a, como a essência de um licor suavís- simo e volátil, que inebria a distancia os sentidos r Ella fluctua-me pairando ante a vista, como um nevoeiro da nwdrogada, que se esvaece nos ares ao romper da claridade, e de que o sol faz realçar a alvura brilhante. Ella nunca me disse que me amava. Quando só em pensamontos a escuto, a di- zer-me segredos intraduzíveis, parece-me a baya- dera indiana, requebrando-se flascida, com uma mor- bidez encantadora, a voltear brandamente às vibra- ções remotas das gandharvas, instrumentistas do pa- MÍÍ50. Eu vôo na mesma ondulação de harmonia, e^ 48 /, ; CO.vrOS PHANTAST1C0S / > sonho / . CONTOS PHANTASTICOS ração, pelo pensamento de longas TígUi^s; era a contumácia da desesperação que me dava forças, d me fazia caminhar incansável sem saber para onde. Este vasio da existência amputava-me para todas as distracções, via em tudo uma futilidade, sentia-me mau, com uma vontade de torturar, de contradizer, de estar sempre em hostilidade com todas as idèas que não fossem as minhas. A dialéctica fora para mim uma arma, que ao passo que a manejava com mais^ prestesa, me tornava mais intolerante. A solidão dera-me uma susceptibilidade táctil, tornava-me prescrutador, analysta ; pretendia ler em todas as physionomias, deprimil-as ante. a minha consciên- cia, como um juiz boçal, que não pôde convencer-se de que o reu que interroga esteja innocente. Saía para as ruas, a luz opprimiame, a multidão atro- pellavame, sentia-me olhado, como nos tempos do absolutismo papal aquelle que vergava ao peso do anathema. Um dia saí para respirar o ar livre de uma bella manhã de verão ; uma veia sarcástica, provocadora, não me deixava harmonisar com a serenidade da natureza. Vinha pelo mesmo passeio um sujeito magro, fumando uma ponta de cigarro. A distancia ainda comecei a analysal-o; cada vez que o fitava sen- tATA DE UM CRANEO ''^^ / *^ tia em mim uma hilaridade irrepressivetfpar^ía-me uma cara insignificativa. De mais perto represen* tava-me uma encarDacSo do grotesco, do cómico objectivo, como se encontra nas goteiras das catbe- draes da edade media. Trazia uma vestimenta ve- lha, esfarrapada, que produzia uma antíthese perfeita com a sua edade. Mais ao pé, vi que tinha um lume de vida nos olhos, o movimento, a expressão de uma graaide actividade interior. Eu tinha caminhado para elle com um riso molador, com pretenções a observal-o, este casquilho em quinta mão, e fui para elle a pretexto de accender um charuto. Conheci então o valor da phrase com que o povo exprime um desgosto intimo e repentino : caiu-me o coração aos pés. Via n^aquelle fato esfarrapado de escovado, a lucta de uma alma, que arca com a miséria, de um homem, que aspirava ã decência, e que proseguia temeroso, como conhecendo que a vestimenta o degradava e o destituía de impor- tância, que um descuido qualquer o expunha aos apupos da vadiagem. Assim explicava commigo aquel- les ares affectados de elegância, que despertaram a risada, que resoou só dentro em mim. Era tam- bém creança, tinha uma figura trigueira, uma certa vivacidade de movimentos, uma timidez que se não 58 Sente-se n'estas palavras do poeta a dòr do co- 86 ' ' , CONTOS PHANTASTICOS ração ^de um pae, a quem todo o sentimento e une* ção religiosa não podem consolar. Verga diante d'essa agonia, resigna-se. Passado o anno do novi- ciado ainda o coração virgem de Marcella palpitava com o amor divino. Pronunciou os votos, e professou. c Ella dormia sobre a palha fria e dura, e andava descalça; o corpo andava occulto em uma vesti- menta humilde ; só os olhos eram a expressão de sua alma. Oh bemaventurado desengano das coisas da terral exclama o poeta na solidão do seu amor. Esta virgem tão bella, tão casta, tão pura, consa- grou a Deus os seus dezesete annos I » Estes desgostos da vida foram-o levando á sepul- tura. Lope de Vega succumbiu no auge da admi- ração. O seu funeral foi brilhantíssimo, como o de Miguel Angelo. Marcella, a intelligente filha do poeta, pediu para o cortejo passar pelo convento das Trinitarias descalças. No momento em que o préstito parou diante do mosteiro, viu-se appare- cer por entre as grades avaras um semblante ma- ^ cerado por uma dôr lenta. Era Marcella chorando a morte do pae, pungida pelo abandono em que o ti- nha deixado. Instantes depois, sumiu-se na escuri- dão da cella, e ninguenl soube o que a levara a^ abandonar seu pae naquella velhice. l OGIVA SOMBRIA Som duvida, no tempo da mais bella flor da arehitectura gothica, qaando foi construída a cathedral de ColoDia, ligata-se uma grande imjK>r- tancia a estes números symbolicos, Sorque a concepçfto ainda confusa as idéas racionaês, contenta-se fa- cilmente com estes signaes exterio- res. BBOBL — Esthetica. A cathedral ! a creação suprema da cdade média, em que a arte, pelo sentimento, em uma strophe de pedra, sabe concentrar o espirito radiante do cbristianismo, pela força audaciosa do symbolo! EUa representa a aspiração incessante da alma que se eleva para o céo ; é ella como a esposa dos can- tares, que espera em silencio a visita do amado, e se veste de suas galas e realça de encantos. A curva suave da ogiva imita uns párpados languidos, ^uma pupilla scismadora, enleiada n'aquelle extasis sensua\ do amor divino, que Tberesa de Jesus sentia • 88 ij i CONTOS PHANTASTICOS DOS seus delírios mysticos; as flexas atrevidas, atiradas para os ares, a linha a inSnitivar-se, a perder-se no espaço» as agulhas bordadas, renda- das, são os cabellos dispersos, floctuantes da donzel- linha, qoe se assenta cansada de errar pelas bre- nhas e em voUa da cabana dos pastores á bosca do amado. A cúpula altiva, representando aqnelle momento em que a alma se desprende dos limos terrenos e se absorve toda na mystica unitiva» é o coUo, que o poeta dos cantares comparava à torre de marfim que olha para o occidente, e cuja ma- gestade é similhante á da lua que se alevanta. Mi- guel Angelo chama também a uma egreja, nas ef- fusões do seu pantheismo artístico, mia sposa. Cada. monumento antigo é como uma fronte ve- neranda, enrugada pelos séculos, animada por uma expressão profunda. Essa expressão é a linguagem dos evos, creada pelo espirito que não pôde con- templar um facto, acreditar na sua existência inde- pendentemente de uma idéa, de uma razão de ser que procura achar n'elle. É a fatalidade do enigma da spbinge. As cathedraes gothicas reúnem quasí sempre a legenda pia, com a legenda grotesca e diabólica; ellas são como a incerteza da alma que paira duvidosa entre- a possessão e o extasis. Umas A OOIVA SOMBRU C y^*/lS9 â / vezes, sSo os anjos que vem de noitè^ trazer de longe grandes moUea para a edificaçia da fabrica, que lavram a pedra, qoe alevafktam o mosteiro. É a inspiração do anODymo na^ grandes obras. Ás vezes, é o diabo, que Gom a mira em dilatar o seu império iaz tudo, e transporta para a construcçSo as melhores peças que rouba d'outros monumen- tos, como uma oolumna do templo de Diana em Epbeso para o teoaplo de S. Zenão em Verona. A alma do architecto está retratada na sua concepção ; reeeiaodo de suas forças para realisar o ideal su- blime dos s^tim^tos do cbristianismo nos blocos de mármore para que cria uma forma, não teme evocur a potencia das trevas. Nas ogivas escuras, soturnas das cathedraes gotbicas, nos arabescos ex- travagantes das janellas esguias, nos monstros bo- qui-abertos que servem de goteiras, nos mastho- dontes informes dos pedestaes, reflecte-se esta al- liança do mysticísnio goetico com o mysticismo di* vino. Muitas vezes a cathedral tem o mysterio de um symbolo que se mobilisa para seguir os senti- mentos da humanidade ; com as invasões e desço- brimentos marítimos ella toma a forma de um na- vio voltado para o oriente, d'onde lhe vem a luz ; também imita uma cruz estendida ao longo, como 90 / /CONTOS PHANTASTICOS na nossa maravilha de archíteclura a Batalha, o poema da crença e do heroísmo de um século. Estamos em plena edade média. A noite era ca- ligínosa e tétrica ; o coriscar frequente dos relâm- pagos, o rimbombo soturno dos trovões repercutín- do-se distante, e o restrugír medonho da floresta, completavam as harmonias intraduzíveis da tempes- tade. A alma, diante d'este espectáculo estupendo da natureza, sentia uma pressão que a fazia con- centrar-se possuída do sentimento do infinito, a que os homens que tudo indagam e submettem ás for- mulas metapbysicas chamam — o sublime. Via-se atravez da escuridade absoluta das horas mortas um clarão incerto, como de uma alampada veladora. Seria algum discípulo de Flamel ou de LuUo absorvido pelos mysterios da alchimia, submet- tendo a matéria, interrogando este Proteo eterno, que, a cada pergunta, ostenta uma forma diversa, e responde de mil modos differentes, sem que che- guem a surprehender-lhe o segredo de sua simpli- cidade? Seria um monge solitário enlevado na paz ignota da vigilia, procurando, no silencio da noite, elevar-se pelo coração até Deus ? A luz jorrava da janella do aposento humilde e sombrio. Dentro, sen- tia-se o respirar cansado de um peito oppresso ; a A OGI?A SOMBRIA //// 91 alampada espalhava em tomo uma p&ffbmov^ onde fluctuavam as visagens caprichosas de uma mente tresvaliada, e vinha reflectir-se pallída, descorada sobre o rosto macilento, em que os gestos davam uma expressão incíHnprehensivel comoospensamen* tos que o agitavam. Vía*se n'aquelle rosto impressa a anciedade dos que penetram pela intuífSo a ver- dade de um problema insolúvel, e uma distracção leve lhe fez esquecer. Sobre uma mesa estavam pergaminhos extensos, desenrolados, cobertos de linhas cabalísticas, com que se evocam os espíritos nocturnos, compassos e astrolábios, espheras e mappas. Era allí que morava mestre Gerardo, o architecto da cathedral de Colónia. Estava contemplando o tra- çado da sua obra ; a physionomia animava-se-lhe de quando em quando com uma luz, um resplendor vivo de tra nsfiguraçSo, como n'um extasis em que o ideal se deixava tocar, determinar em uma forma só concebida pela mente do homem. Os cabellos andavam-Ihe revoltos, espalhados sobre a fronte, como nas convulsões de uma sibylla quando entrevê o futuro, e sente o influxo vertiginoso que lhe dieta o vaticínio. Depois, uma sombra espessa, como de um desgosto repentino, veiu offuscar-lhe a sereni- 92 CONTOS PHANTASTICOS dade que se lhe espelhara na froote, em que os anDos redobravam a magestade. N'isto, levou a mão á cabeça, como para suster o peso de uma idéa que lhe occorrêra: — A arte I a arte ! é ella que me vem descobrir estas linhas que eu traço no mármore» e que hão de ser a admiração dos séculos. Ella vem-me eosi- nar este segredo do ornato, a variedade disposta de modo, que leva o espirito á unidade do pensamento. A arte é uma religião que inspira também uma fè viva, ardente, intensa, e dá forças para affrontar a duvida, que cerca e punge o espirito creador. Um dia duvidaram de mim, não imaginavam que eu po- desse levantar essa molle de pedras, uma catbedral representando o vôo mystico da .alma f Riram^se do plano da minha obra ! Eu tenho pensado dias e noites, como na virgem eleita dos sonhos da mocidade. A cathedral! elia apparece-me na phantasia, illuminada por um sol brilhante, trasbordando de musicas e harmonias suaves, perfumada de incenso, revestida de purpura, recamada de oiro, como a noiva que se veste para entrar no aposento do real esposo. Cada pedra que se vae dispondo, cada arco» cada pi- lastra erguida, é a ponta de um véo que se alevanta e me deixa vôl-a, sonhal-a, idealisaUa sobre essa A OGIVA SOMBBIA 0/7 93 / ^ realidade incompleta. É como a terra ^e «^ke ap- parecendo vagarosamente ao naata cansado das tor- mentas, à medida que se esvaece o nevoeiro da ma- drugada. A catbedral! a catbedral! eu scísmo e es- tremeço diante d^ella, quanfdo a contemplo ; sinto o delírio do artista grego apaixonado pela verdade que ia descobrindo o seu escopro. Ella parece-me ema fada escondida, e que a arte me descobre o se- gredo para quebrar-lhe o encantamento, e mostrada altiva, bella, radiante elevando-se para o alto n'oma ascençSo divina. Eu queria vél-a suspensa nos ares, servindo-lbe as nuvens e os cúmulos alvacentos de pedestal I Agora jà me não inspira terror o desdém dos meus inimigos; descobri a ultima stropbe do poema da minha vida, hei de confundil-os, fazel-os curvar-se adorando-a : é o zimbório, a cúpula arro- jada às alturas, similhante ao vôo extático da alma até á absorpção em Deus. Havia n estas palavras a vibração frenética do delírio ; mestre Gerardo de Colónia ficou silencioso como na prostração dos fortes impulsos que lho dera a alegria. Os olhos brilhavam humedecidos, scintilantes, exprimindo o regosijo intimo da con- templação da sua alma. E tornou a inclinar-se so- bre a folha de pergaminho, a recompor na menie 1)4 CONTOS PHANTASTICOS as liabas qUe aíli traçara n*Qm momeDto de inspi- ração. Depois, accometido por um novo accesso de enthusiasmo, arremessou de si o traçado ; os oihos ílammejaram coruscantes, parecia que estava doido : — Eu quero mostrar assim, que essas confrarias dos obreiros constructores de Slrasbourg, de Vienna, de Zurich e de Magdebourg não podem disputar a proeminência a Colónia. Todos os obreiros e artiSces da Baixa-Âllemanha hão de reconhecer em mim a supremacia do chefe. Que imporia que Slrasbourg queira ser a sede da grande mestria? De que vale a homenagem prestada pelas confraternidades ma- çónicas da Àlta-Àllemanhã, de uma parte de França, da Hesse, da Suabia, de Thuringe. da Franconia e da Baviera? O zimbório da cathedral ha de erguer- se bem alto para a admiração de todos. £ caIoU'Se de repente, como envergonha ndo-se diante de si mesmo, de se haver deixado possuir d'aquella vaidade. Depois continuou com dôr : — Quantos monumentos estupendos, quantos obe- liscos gigantes, que assombram as edades, e que mostram o poder creador do homem, compelindo com as creaçv^es de Deus, quantas maravilhas es- palhadas pela superfície da lerra, e que o architeclo nâo quiz que se soubesse o seu nome, cora uma abne- A OGIVA SOMBRIA f ^^ ^^ gaçSo sublime da gloria do mundo I B6, que ainda não completei a minha obra, que a tenho ainda na cabeça, nem sei mesmo se chegarei a realisar este sonho, se terei a força de Athlante para suster nos ares a cúpula audaciosa, eu, mesquinho, ufano-me, ensoberbeço-me ! O génio não tem consciência de si, não conhece o poder magico de que dispõe, por isso não se infatua. O que é a gloria do mundo ante a gloria celeste I Illusão que nunca chega a ter um momento só de realidade ; é uma nuvem te- nuissima que tolda o azul diapbano do empyreo. Para a' alma do que pressente os encantos do céo, a gloria do mundo é uma tentação dolorosa; um martyrio incessante ; porque então para ella a vida è como a luz vivida da alampada, que se consome no silencio da noite diante da imagem veneranda; assim, a alma procura envolver-se no olvido, no esquecimento de si para resplandecer mais pura. Os legendários estão cheios doestas lutas violentas com os sentimentos mais profundos do coração do homem. Um dia Rubens estremeceu attonito diante de um quadro escondido na penumbra de um coro em uma egreja hespanhola, o quadro era um mys- terio quasi impossivel de ser traduzido, divulgado pelas cores sobre a lella. Era a morte do justo. A ' .- 9G '*' ' 97 Mestre Gerardo de Colónia ficara ãj^orfido em uma meditação profunda. A tempestade continuava solemne e grandiosa na madez da noite^ Sentiu um leve rumor no aposento, que a contenção de espi- rito em que estava mal deixou perceber. Prestou ouvidos. Batiam á porta. — Quem será? assim tão fora d'horas!— ^ cor- reu os ferrolhos. Entrou uma figura alta, embu- çada em um gabinardo longo, o rosto assombreado pelas abas de um largo chapeirão. — Quem sois? — disse-lhe o architecto, preoccupado ainda na sua abstracção. — Sou um irmão da confraria dos obreiros cons- tructores de Strasbourg ; — tornou o desconhecido com uma voz soturna. — Entrae. Sentaram-se, contemplando-se um instante silen- ciosos. — A que yindes ? — O que me traz ? — redarguiu o desconhecido com um tom de ironia acerba, — deves sabel-o me- lhor do que ninguém. Confias no zimbório da ca- thedral de Colónia, para quereres assim submetter à tua supremacia a mestria central de Strasbourg. É impossível e chimerica essa tua loucura. As gran- 7 98 ^ CONTOS PHANTASTICOS des loi^s qoérem todas a independência. Demais o zimbório, a obra que é o teu orgulho, nSo está prompta e talvez nunca a possas levar ao cabo. Mestre Gerardo ficou espantado, hirto de raiva diante da audácia do desconhecido. Depois voiveti- Ibe com uma severidade forçada que lhe abafava á voz: — Ainda sou arcbitecto! e o zimbório ha de ser o primeiro a saudar no alto os alvores do sol quando se alevanta. Juro pela minha alma. — Aposto em como te enganas ! — Aposto em como te hei de confundir, e a todas as mestrias rebeldes da AUemanha ! — insistia o ar- cbitecto. — Pois bem ! Eu comecei ha dias a obra do aqueducto de Treves, e espero ainda vel-o acabado antes de teres prompta a cathedral. Se assim não for, no dia em que deres por acabada a tua obra, despenho me do aqueducto. Tu precipitas-te tam- bém dos coruchéus da cathedral se eu vier recla- mar primeiro ? Acceilas a aposta ? — Acceito. — Juras ? — Juro. A este instante ouviu se longe o canto do gatlo. O interlocutor mysterioso desappareceu súbita- A OaiVA 60MB&IA /" mente às primeiras notas do nunGio .d|9[/aU6rada. Foi es&t3o Qoe /a architecto reconheceu o— diabo; não qm acreditar na realidade d^aquelle pesadello. O canto do gallo é celebrado nos bymnos da egreja, principalmente nos de Santo Ambrósio. Gaito ca- nente vigilemm omnes. Elle symbolisa a voz inte- rior que desperta a alma do somno da tentação ; foi o canto do gallo que despertou lambem a Pe- dro no átrio do pretório, quando renegou o mes- tre. No mysticismo goetico elle representa uma parte importante. A imaginação exaltada pelos sonhos da noite não podia deixar de o revestir de mysterio. Já a Grécia lhe havia formado o mytho : è o castigo de Alectrião. A sombra que reclama de Hamlet uma«^ingança, o coro das feiticeiras de Macbeth, desapparecem com a magia do canto. Um dia o archilecto subira à cathedral; estava prestes a terminar-se a cúpula. A alegria hallucina- va-o. Appareceu-lhe então uma cabeça disforme, rindo, confrangendo-se em esgares satânicos por en- tre as sombras profundas de uma ogiva. Disse-lhe que estava prompto o aqueducto de Treves. Mes- tre Gerardo empallidcceu e voltou o rosto à pressa ! Aquella nova aterrava-o. Baixou os olhos como para suspender uma vertigem instantânea, fatalmente o V 100 OONTOS PHANTASTICOS - ' .' •■ • relance mediu a altura da cathedral ; o angulo vi- sual dilatou-se de modo que Ibe produziu a attrac- ção do abysmo. Resistiu de balde, vacillou um ins- tante e despenbou-se por fím. Disseram que fora a alegria de vér a sua obra, que Ibe causara o des- vario que o precipitou. Assim conseguiu estabelecer o seu predomínio a mestria central de Strasbourg. ^■/ '•. ' AS k6UMS DO NORTE (conto polaco) Harpa sacrosanta, orvalhada pelas lagrimas dos videntes, que repousavam sobre ti as frontes enca- necidas, banhadas no pranto do captiveiro, quando ã tarde abandonada na solidão do exilio, à beira da torrente, a aragem vespertina vinha gemer em tuas cordas, o cântico remoto era como o anceio de um coração oppresso, ai, que se perde confun- dido com o rojar das cadeias. Inclina-te agora em meus braços, e vibra-me um canto de desespero, insoffrido^ eterno, para acordar a jturba, que dorme ^ob o peso das algemas^ ~^i O vento liyre saberá levar a toada longinqua, para achar ecco no peito dos desgraçados. Pátria t pátria I és a túnica inconsutil sobre que rodam 9s dados do infortúnio. 102 CONTOS 1>HANTASTIC0S Polónia I tu l§s o peito exangue, ferido pela lança do incrédulo. Podesse o teu sangue dar a vista ao que te fere com mão obstinada. Ao menos, que o teu ultimo arranco afaste para bem longe o bando dos abutres selvagens que pairam sobre ti, Prome- theu, vencido em terra, mas, que ainda nas con- vulsões da agonia mostra a animação do fogo divino da liberdade. Oh ! mas de que vale ao poeta desterrado con- templar a ruína da pátria! Para que ba de elle pedir á sua harpa um canto de angustia e saudskle, se aquelles que o escutam e se sentem fortes para luctar, com um esforço sobre humano, são depois martyres do seu enlhusiasmo? Que tristeza profunda o lembrar-me que o meu poema a Tentação, exaltando os estudantes da Li- thuania para sacudirem os tyrannos, fez cem que os oppressores arrojassem para os steppes e minas da Sibéria a flor da mocidade da Polónia t Pobre Karl ; ainda tenho aqui a carta em que elle me conta os trabalhos da jornada para ò desterro : AS ÁGUIAS BO NORTE De um estudante da Lithuania ao poeta anonymo da Polónia « ^m to4os os teinpQs a pp^i9 te^n sido a ex- press3io cIqs seatimentos profundos da bumanidade; ctKor^ com ^uas dores, e è e)la que vae ao sepul- çliro d^ opções proferir o mrge et ambtiia à raça supplaqtada pela pressão dos déspotas^ Desde os prophetas .dQ Israel, e Tyrteu. e Gallino até Roger de risle, Kerner e Poetefi, a poesia tem dirigido as revoluções ; é como a columna de fogo que leva à terra proqiettída atravez dos errores do dei^erto. Nós er^irnos creanças, aqimados dos sentioieotos Qiais puros, que a e4ade oSo deixa contamiuaf ; chorávamos de magoa e dçspeito, com vergonha de vernios enyilecid?, sob o jcigo obscurante dos cza- res, esta pot)re p^t^ia eçtu^gada por um colosso de inércia e barbaria. Um dia 9ppareceu-nos um poe- ma extranho, pqvQ, un) grito ancioso em que se exbfilava uma alma. Pareceu-nos a voz da Polónia que DOS chamava em seu desalento ; sentimo-nos fortes nq primeiro impulso. l i 04 '/ / . CMÍTOe MiANTASTlCOS l^siudavamos ea/Lilbuaoia ; uma noile reanimo- ms para lel-o. Brilhava em cada rosto am lampejo de colma e esperança. Cada strophe era um sobre- saltn, a ancieiiade do sacrificio. Éramos como aiiuollas creutes dos primeiros séculos do cbristia- nisiDO, liiibamos a sede do martyrio. A Qoite da i-oiijuraçUo era tempestuosa como os peusameotos iiue lios agilavam. Juramos alli, com as mSos sobre Li.< cstaucias mysteriosas que nos vieram despertar do letbat^o da oppressão, abnegar do amor, da fa- mília, da vida, tudo por esta desgraçada PolODiã. A alampada solitária que alumiava o aposento dei- xava uma penumbra pbaotastica e terrível, como em um tribunal whemico ; os olhos coruscavam com um brilho de alegrias sanguinárias. O entliusiasmo precipitava-nos. Sentíamos forças de Athlante, uma audácia e tenacidade para a lucta ; mas, vla-se ao mesmo tempo em cada roslo a sombra, nSoseide que presentínieoto funesto, de uma aspiração irrea- lisavel. Seria uma desgraça imminente? Quando dos abraçámos como irmãos na mesma crença, para os transes mais dolorosos, correram as lagrimas, ferventes, como nos momentos rapi- tlos de uma despedida para sempre. Havia um si- t — ;» augusio. Parecia que o ceu e a terra escuta- AS AGOtAS DO NORTE f^/^ jLP^ vam o nosso juramento ; que a patríf agrilb<^ada interrompera os lamentos para escutar a voz con- soladora de seus filhos, que esperavam o dia da redempção. Foi então que ella àppareceu, Hedwige, a mulher que eu amava, o cabello destrançado pelo vento da noite, cançada, ofifegando, sem cores, enfiada de sus- to. Jnlguei-a uma apparição angélica, que baixava para trazer-nos a palma do martyrio, a annunciar os transes d'este horto em que estávamos recor- dando as agonias da Polónia. Como ella estava belia, radiante; era uma proplietisa, altiva como Débora quando proclamava às gentes a lei, à som- bra das palmeiras entre Rama e BetbeL sobre as fronteiras de Benjamim e Ephraim. Ficámos sus- pensos, esperando o hymno que havia romper dos lábios sellados por um mysterio profundo. Como deixou ella a casa de seus pães, nas sombras da noite medonha ? Como soube onde estávamos, quem a trouxe aqui? Fora o amor, esta illuminaçSo da segunda vista. Hedwige proferiu, depois de alguns instantes de repouso, com a voz entrecortada e tre- mula: — Ainda é tempo ! Os soldados russos vem em busca de nós; sabem da conjuração, e perse- i * 106 i / / ÍÍ9NTOS PHANTASTICOS / { '/ guem^QOs. Eu^não aconselho nona fuga ignomi- niosa ; poupemo-nos para a hora saprema do res- gate. Depois ella veia para mim e abraçou-^me. Ia co- meçar a falar, quando se sentiu na rua o estrépito de armas, e vozeria de uma soldadesca brut^ e desenfreada. Não me custava a vida ; m^^s tel-a 9 meu lado, allil vêl-a sujeita ã irrisão e fnalvadez dos que vinham para prender-QQsl PQl)re Qedwige; ella abraçou-me e sorriu-se: ^-* Tens n^edo ? vejo-te tão pallido 1 Recieias qqe eu não tenha coragem para corresponder à tu^ bra- vura? Eu sou mulher, é verdade. Era ao sqspiro de uma mulher que. ^ liberdade romana acQrdaiva sempre. Lucrécia e Virgínia eqsinaram^me tam- bém a ser forte um dia. Karll eu smto que Doeste instante nos une um amor mais alto e desinteres- sado, que nada tem das paixões terrenas. Dà^iqe o abraço que ha de fundir, n'uma só, as nossas al- mas para sempre. Agora já te pos^o dizer como Ârria, se te visse esmorecer no perigo, o que ella disse levando o punhal aP peito : Pwtm, non dolet I O tumulto^ o som confuso das armas, o tropear dos soldados, não me deixaram ouvil-a mais. En- traram na sala sombria, como um onda turbulenta A& JL6C9AS DO NORTE ^^ / J07 goe irrompe os diques e se precipita c()ino'^im^op tice fremente. As armaduras reluziam, e nos cau- savam a vertigem do terror. Um frio lethal se es- coou por mim; lembrou-me luctar para defen- del-a. Reinava um silencio da morte. Já sabíamos a sorte que nos esperava. Depois vieram lançar-nos as cadeias pesadas, as gargalheiras infamantes da escraviãio, ultrajando eom risos aquelte sentimento puro, que nos dava constância para o martyrio. Era impossível resistir ; todo o esforço* seria inútil. Dei- xei também algemarem-me. Um olbar firme de Hedwige inspirou-me uma resignação indizível. NSo sei que apparencia divina, que irradiação sublime, etherea, envolvera o rosto da minha amante, que os soldados não se atreviam a a(Hroximar-se. Seria o terror, que fazia cair em terra, fulminados; os que tocavam na arca sacrosanta ? Na serenidade al- tiva que ella mostrava n'esse instante, oonfaect-lbe uma resolução extrema; Hedwige queria também «er prisioneira, pa^a soffrer commigo as dores do desterro. Ella lançou mão do poema que estava sobre a mesa, e começou a proferir algumas das strophes mais arrebatadas^ com uma voz prophe- tica> no tom mysterioso de uma sybilla. A magia 108 , / / (toNTOS PHANTASTICOS d'aquella Vof^ sentida prendia; acaram immoveis, quedos, esculando-a : Fragmentos de uma elegia polaca — « E lentamente, mui lentamente, por detraz do Homem Deus, avança deslumbrante de belleza e sem vestígios de morle a minha dilecta Polo. nia. — EUa pára sobre os umbraes da Sião pro- mettida a todos os povos, e — d'estas alturas sagra- das stía voz retumba, dirigindo-se às nações reuni- das muito longe, là em baixo, nos términos do es- paço. « A mim, a mim, oh vós; raças fraternas ! A ul- tima lucta do ultimo combate terminou, — os em- bustes das traições e das mentiras terrestres estão destruidos. — Subi commigo para o reino da paz. » — E o coro das nações lhe responde : « Benção e gloria a ti, oh Polónia ! porque ainda que tenhamos todas sofifrido — tu supportaste mais tormentos que nenhuma de nós. — Pela enormidade das injus- tiças accumuladas sobre ti, conservavas constante- mente o inimigo debaixo do raio de Deus! — No transe do martyrío, tiravas de teu coração uma vida mais enérgica que a dos teus oppressores, — e peto ÁS ÁGUIAS DO NORTE y ' 109 teu sacrificio nos salvaste. — BeDçSo é glorij^ ti, oh PoloDíal» Ob t quantas vezes [por uma noite sombria do outono, a voz de minha mãe ou de algum antepas- sado sae do tumulo, e chega até mim para me fal- lar do futuro. — E eis que a este ruido mysterioso, visões estranhas me apparecem. — O canto de trium- pho soltando-se do peito de milhões de homens, resoa em derredor. — Os vencedores passam em pbalanges innumeraveis, — eu vejo as brancas, res- plandecentes figuras das irmãs e dos irmãos liber- tados da escravidão ; — a centelha da immortaUdade faísca de todas as frontes. — Mesmo sem azas, elles vogam no ar, como se fossem alados ; í^\sl coroas brilham como se fossem coroados. — E eu mesmo prosigo no meio de todos, e me sinto em uma es- pécie de ceu desconhecido, antecipado. E, quem sabe ? talvez que a prophecía dos meus sonhos se realisasse já sobre o tumulo da Polónia ! E não havia senão eu, eu cadáver, que faltava en- tre os resuscitados ! Oh, através doestas grades e d'estes muros que me fecham como as taboas de um féretro, o meu espirito se illumina e se expande 30 .longe, transpondo o tempo e o espaço I — Sim, eu o vejo : além, por toda ji parte myriades de es- 110 / ; /CONTOS PHANTA&TICOS trellas e flores ; — o mundo regenerado celebra suas núpcias com a joven liberdade! — Na aresta ;dos Alpes, DO cimo dos Carpathos, o cea resplandece com os raios da mesma aurora, — e todos os po?os unidos, confundidos, parecem formar mn só oceano, por sobre o qual é levado o espirito de Deos *. t Á medida que ia proseguindo no canto, Hedwi- ge, como a sulamite dos cantares, comparada ã torre que olha para o occidente, parecia suspensa ; o sem- blante com a graça diaphana de um seraphim. N'aquella elevação surprehendente, a commoção em- baraçou-lhe a voz; não pôde falar; ficou hirta, lí- vida, como na concentração violenta do extasis. Era o génio da Polónia incarnado em uma mulher que soffria. Hedwige ficou silenciosa ; nem um queip- me, uma lagrima sequer, quando lhe roxearam os pulsos. Quando tornou a si, e conheceu que iâ compartilhar commigo a mesma sorte, sorríu*se, com a expressão divina da alegria dolorosa e da resi- gnação. Dias depois leram-nos a sentença. Doze annos de de desterro e trabalhos na Sibéria. Hedwige escu- tou impassível. Custava-me tanto vel-a soEfrer em * Strophes xix, xx, xxi do poema O Ultimo, do conde Sigismundí Krasinski. AS AGUlÀS 1)0 NORTE 7/// Hi síleoeio ; ella fazia um eâfcurço inauâito {rara n3o veargar com as dores excessivas ; nSo queria redo- brai* o meu sofifrimento. Oh meu poeta I foi ent^o que me convenci de que o homem é o lobo do ho- mem ; peior ainda que o lobo cerval» porque espia os segredos da nossa alma, e antes que nos infii- jam as sevícias do corpo, torturam-nos o espi- rito, insultando os sentimentos mais recatados e santos que nos dão coragem nos desalentos da vida. ^Partimos todos na carroça dos desterrados, um kibitka peior que o tormento inventado para matar o integerrimo Atilio. As rajadas do inverno eram cortantes, e tiravam-nos todo o vigor para avançar ; depoiSi vieram amontoando-se os gelos, e nos obri- garam a proseguir a pé ; a desolação dos steppes, por onde passávamos, despertava-nos não sei que sympathia, talvez porque eram uma similhança vi- sível do abandono e ruínas em que estavam nossas almas. Hedwige, delicada e frágil, não podia caminhar mais, via-a desmaiar pouco a pouco; a lividez do se- pulchro no semblante desbotado I Parecia-me a flor mimosa, emmurchecida com as geadas da noite. As pancadas do knoutj um látego formado de tiras de 1 12 / / yj 0OJjaPW PHANTASTICOS coiro crú/'e ^etas de ferro» com quo a verberayam para adiantar •canuabtn esgotarattilbê as forças. Ei Dão sei que haja palavras humanas para «iprimHr a dor 6 a^raiva que seoli n'6)S6e iDstantQ, poTt|tieo coração do homem uouca sofirea tanto; -para des- cobrir j^ima e^pressSiO pararo iníinitdNdb angostla. Hedwige li^m se atrevia a olhar para tnim;>d6pDÍs ví-a cair transida de frio e cansaço; esgotai^ o Ul- timo esforço. Quiseram deisaha sepultada entra o gelo, À noite vinha a fecharnse aspérrima^ 9lst&Á\ eu não podia sequer lembrar^me que o corpo fla minha amante ia ser em breve pasto dos abutres. Estava já lambem sem forças. Pedi para leval^iaas meus hombros. Era a loucura e egoísmo do amor» que {asiia oM que a conduzisse, para sentir ainda agonias mAs violentas que a morte. . •' » ,• — «Oh! antes me deixasses sepultada na soli- dão dos steppes, exposta às aves nocturnas^ do que vermo-nos agora separados para sempre f»— Disse-me ella a abraçar-me phrenetica, louca, quando nos separaram, mal que chegámos ás minas da Si- béria. Os meus companheiros do infortúnio não os tor- nei mais a ver : Hedwige foi condemnada ao traba- AS ÁGUIAS DO NORTE (' / ' '^^i2 lho das minas de mercúrio, muito longe'. P^í^a^y^oube mais d'ella. A mim, enfíarom-me um capote de fel- tro 6 desceram-me por uma corda pelas gargantas da terra, por um boqueirão escuro ; à medida que ia baixando, la sentindo vozes confusas, ruído de enxadas. EntSo, vi na obscuridade profunda a luz baça 6 mortiça das lâmpadas de segurança, e uma multidão de homens escaveirados, magros; era uma cidade de múmias. Era aquella a minha habi- tação para doze annos de existência. Admirava-mo de ver alli creanças; filhos dos desgraçados obrei- ros, racbiticos, enfezados, não conheciam a luz do mundo, a vida resumia-se no trabalho insano. As dores que supportava haviam-me embotado o sen- limento, tinha a impassibilidade do idiotismo, a mu- dez do assombro. Ás vezes uma lembrança longi- qua de Hedwige e de minha mãe, a quem não pude dizer ao menos o extremo adeus, me davam a consciência de que ainda vivia; mas não podia alli- viar-me com as lagrimas. Os que me viam nunca se atreveram a pergun^ tar o meu crime. Não sei que esperança me pren- dia a vida, para que me não despedaçasse contra as rochas, que ia arrancando.* Eslava já acostumado á obscuridade. Ura dia começou a lembrança do Hed- 8 114 /// (áiMOS PIIANTASTICOS f 11 wige a occupar/me a imaginação. Seria uma sau- dade viva? algum prcseatimento ? Lembrar-se-hia ella também de mim o'esse iostante ? Era impossí- vel tornal-a a ver. Julgava-aj^mortdj creaoça è dé- bil como era. Sem Hedwige, para que queria ea a vida ? Oh I se a visse ainda uma vez, morreria con- tente, resignado, perdoando tudo quanto os que se dizem meus similhantes me fizeram soffrer. Era uma loucura esta idéa. £ continuávamos si- lenciosos a romper a mina lobrega e funda. Come- çámos a sentir um écco surdo; eram os trabalha* dores de outras minas, que se encontravam. Conti- nuei a trabalhar com mais afan, na direcção d^onde vinham os sons abafados. Encontràmo-uos dias depois. Que alegrias, qu^ abraços Íntimos entre aquelles sócios da desgraça. Se estivesse ali Uedwige! Que fatalidade I o meu de- sejo era o presentimento. « Já te esqueceste d9 mim? » Senti um abraço sem vigor; fitei nas som- bras o vulto, que me falava e me estreitava a si. Era ella, li vida, desconhecida, com a magreza da consumpçao ; o mercúrio penetrâra-lhe a parte es- ponjosa dos ossos. Tive horror do ente que amava, era só a compaixão que me prendia a ella. — « Lembras-te das palavras de Simeão quando ///« AS ÁGUIAS DO NORTE / / ) **^ no templo \íu o Messias em deus braços ? Hoje di- go-te o mesmo, RarI; já posso morrer.» E 60 continuei a viver para ver prolongados a miséria e os flagicios incríveis, que me cercavam. Jà n3o tinha o amor, que alimetítava as horas dá minha solidSo. Hédwige tinha-me expirado nos bra- ços ; soHâra a alma cândida, acrysoTada nas tribu- lações, no ultimo beijo, que recebeu de mim. D*ahi por diante a vida pareceo-mé mais impossível de suppcrtar ; eu n3o vivia, vegetava como o lichen no fundo de uma caverna escura. A imbecilidade pro- veniente da atonia e dos pesares indescriptiveis pro- longaram-me a existência. ' > Lembrava-me minha mãe. Se a tomaria â Ver ainda! Estaria ella jà no sepulchro, ralada com a saudade da ausência, cansada de esperar a volta do capliveiro? Sem successos, nem distracções, que me preoccupassem a vida, cada momento parecia- me um século de desesperação. Estes doze annos foram uma outra existência. Quando voltei á pátria julguei um renascimento ; mas tornava a apparecer ã luz do mundo para mais provações e dores, por- que minha mãe estava morta ; a pátria^ o que ainda me fazia palpitar o coração com vida, vejo-a esque- cida, inerte sob o jugo prepotente da Rússia. Hoje !!6 , '^ / /Ga^NTOS PHANTASTICOS escrevo-1^, feeu poeta, porque é a única pessoa, que me resta no mundo, e só me prende ã vida o juramento, que fiz de immolal-a no altar da pátria. — KarL » O poeta aoonymo da Polónia produziu com os seus poemas o mesmo que Mickiewicb; o aotbor do Banquete de Walenrood. Só depois de morto é que se soube o seu nome, era o conde Sigismundo de Krasinski. Â liberdade da Polónia fora o seu ideal, a única inspiração ; é ella sempre que transluz nas maravilhas com que enriqueceu a litterattira pokica, nos Fsalmos do Futuro, no Iridion, na Comeáã& Infernal e na Tentarão, a que anda ligado estefaf- rto que narrámos. .1 J ' -í í; >h' ir.-'>' '■' \j O RELÓGIO Dt^TRÀSBURGO (conto' DB I3S2) > • • i A Cidade, média está oompieUmènte cara^teris^tla tiâs saas legendas; porque 3Q n3^ ba dep^r eH^^ rèomipôr :a bistqria, aoimata com essas eôre^ vivas , dar-lhe movimento. A mais extensa,i a qm abspryea todas as imaginações rudes e creadoras, foi a le- genda do Diabo, reproducção do dualismo antigo, que apparece fatalmente no período instinctivo da genése religiosa. D*esta idealisação do mal provem, na arte, a realísação anonyma do grotesco, mui- tos dos velhos fabularios, e na ascese divina, a ten- tação de que estão cheios Ribadaneyras e BoUan- distas. A sciencia, nos primeiros séculos da egreja, foi despresada, 'amaldiçoada como inulit e perigosa, porque tornava o. espirito rebelde, orgulhoso ; a alma y1 /' •/ 118 '/ ' /CONTOS PH ANTASTICOS perdia cotn á(a a sicoplicidado, que a elevava atè Deus. A observação das lais physicas do muodo er9 uma impiedade; Bacon e Sylvestre a s3o olhados como feiticeiros. É um mariyrio interminável o des- envolvimento da ra^ao. Foi um dos algozes S. Paolo : «Eu destruirei a sabedoria dos sábios e rojeilaroí a sciencia dos eruditos. O que é feito dps sábios ? O que é feito d'estes espíritos curiosos 4?s. sciancias do século? Não os ha. convencido 06u& da loucufa. das sciencias d'este mundo?» A egreja ião seconr* tentou com a acrimonia da invectiva, quiz encarnar este verbo do obscurantismo. As lotas o as ago^* nias que se seguiram estão perpetuadas em umiSdm numero de legendas. Em pleno século xiv. O sol brilhante* em unf céo sereno e límpido de um dia de alegria, derra- mava-se em torrentes sobre a catbedral de Stras- burgo. Voltada para o oriente, segundo o rigor do symbolismo antigo, recebia a luz do alto, como um cenáculo em que as línguas de fogo vinham re^ velar os mysterios da vida e a serenidade, que elJa havia de infundir aos tristes que se acolhessem, cor- ridos das tempestades do mundo, na tranquillidade do seu recinto. A luz reflectia-se deslumbrante das vidraças, que ostentavam um rosicler das cores o RELÓGIO im StRANSSUnGO ó {i9 mais caprichosa!^ e mas ; CRda pedra, estia úpkss^ calda dalfêiicià ãestatôva^-sô mSoslrando ob rendados e lavores exqtlisMl08^âí^o^r6 pm^cla enfôo mais al^ tívd, não topetátra cóm ds tiuve^fs, perdía^sé na pro- fuQdesa do espãfço âzalddo e puro. Era um belto dia de primst?era. Diante dacaâieUralmagestòsà foram-sé agriipaftd(i potíco e potrco algms tiilto» ociosos ; e, áttrahida M^ fazQid cUreôta da^ truu^cp^y instantes depois a raultídSo fiucluaTà Impaciente» como quem espera om prodígio anounciado, etempUgratia, um ecctipsio. Não era nenhum ecciipse/nem tampouco a passa- giôm de um cometa, que então f^tía tremer os pon^ tifices e os reis. NSo era mesmo procissão esplendida» t)ue D povo e os amadores de tertúlias estavam es- perando com anciã. O que seria então? Uma figura extranha, embuçada em um tabardo escuro, chapèo emplumado ao uso da cÕrte, vinha montado, a passapello, em um cavallo fouveiro ; cus* tava-Ihe a romper por entre a turba apinhada ; es- trangeiro ali» nãov^uíz atropellar ninguém, e resolveu esperar que o concurso fosse diminuindo. —O que está toda esta gente aqui a fazer, em um dia de trabalho?— perguntou o desconhecido para um rapaz, que parecia esconder^se entre o 1 20 ) C0J!?ÍOS' PIIANTASTICOS s vulg(^' cofú um arde UMsiesa. a do* uma d6r indi- zi?eI.~Ha alguma prads^o ou festa de jobiteo? Ainda as portas da cátbedra^^stJiqi' feahadasv ~É certo que víriáes de bbm lèi>gô-^voIveu-lhef viviamente o pobre rápaz-^pois ^ue ainda vos não chegou a fama do grande relógio de Strasburgoí. É uma maravilha da Allemanha. N3o^ vedes âqooHBl estfltnasinha da Virgem? Diante :d'ellâ, vem ao bater do meio dia os trez Reis Magos cbmsíJtíls prêBôtiJ tcs, e o gallo autómato» que là 8stá,saecod^asíW5íf& Inga que o sol toca o zenith. '• ' .. s O cavalleiro não teve tempo paracomprehender i[> que ouviu, porque um sussurro immenso, repentínov burburinliou por toda a praça. O carrilhSo deStíasn burgo dava meio dia. Ficaram boquiabertos, atlentos esperando o apparecimento dos Réis Mago^. S6n-^ tiu-se primeiro o ruido estrepitoso de umás-steáfsí pesadas, depois o clangor de uma voz énea, sotartei/ O cavalleiro estava pasmado com o que via*A4hmí do relógio de Strasburgo correra as partidas do mundo. Os palácios, os mosteiros^ os caslellos de> sejavara uma maravilha egual. Ignora va-se o nome do artista. O cabido da cathedral ufanava-se com tamanho e tão singular artefacto. — Ohl dize-me — acudiu o cavalleiro, saindo do o nfiLQ6H> tm STUAnMJRCO espasmo: dauadmiraçãa-^idizehme sfá^íSÍ tíz esta obra prp(}iBi(ii$a>iqii6 èà jn(viQ|f deito^as as etdhdes do roiu:idOi !Pí»*qid^'Bdr.ifi0[{ftdaiJtaa:]ioiqe d'ále? Gude ^$tà a-aclisjUaítrVIeDboéâffiiRraosa >para tret-o. . -^Pei*gairiae$^.jB(diii€(-€avajlamJocp^ de* dn*po- ^^eiiejolai' tol seercido f .!Mabsabbis;i|tte asívossas pal^ypts aoavdaiií naitnôdnlidniluiikia^/^^^ <^)nM.iíimvecqci;lQ'tim^ Qúemien o v^\Q&Q^ -pre^milaer-Túaí» ^algldria (6iilâi-iiie,>pre- ^l^l^rm^.mfíàli^.mt aupriTiscar a.vida i Foi >meu pae I — E as lagrimas die.:ai^cia; e pesar fon^m-lhe ari]a4wda.o^>t)lboSi até;que itHoapea eoi>to ohoro iD6f)iSrh}id'.d6.ore^oca*'0 e^alteirosapapu^-aoe es- U^m^ DOS hriaços. .,n^É a saudade de teu paè, que te lava o rosto com e$S0 praalo de ingenuidade e amor ? NKo sou- be 4) m&irte resp^r tSo preclaro eogeobo? E eu que Tiaha da parte de Carlos v, daFrança^ para visital-o e&la^lb6l ' — BU& ainda viTe^ senhorw Mas que Tidal Ohl antes a morte o tíTesse envolvido nas suas trevas gdadas» antes houvesse nascido sem aquella luz do talento, que é sempre a predestinação do martyrio. A praça estava jã deserta, e os dois partiram en- leiados n'esta conversação. Chegaram á offlcina do 122 '■ CONTOS PHANTAsrm:os relojoeiro. Eraí^um velho; as cans alvíssimas for- mavam-lhe um diadema venerando ; tinha o rosto escondido entre as maos^ aomo quem se abysmára n'uma abstracção intensa, ou n'uma grande e rntra- nbavel agonia. O estrangeiro permanecea hirto sob a soleira da porta ; não se atrevia a interromper os processos mysteriosos d^aquella mente presernta^ dora. A creança aproximou se com famíHaridade, e segredou'^slas sombras cerradas^ que me antecipam a escuridão tétrica do sepulctarov-masque me prolongam a vida, no abandono -da desgraça, para soffk*er a cada ins- tante as mais exornoranates provações. Eu vivo ao desamparo; nem^sei jé ^rabalbâr. N-esta solidSo do espirito» para ésqueeer o tedio e a desesperaçSo que me pan^m, eu invento macbinismos compli- cados, que o meu pobre filho executa. É elle o tier*-- deíro do meu engenho. Cada pancada do relógio no carrílhlo da cathedral, é uma palavra de sarcas- mo^ um insulto vibrado por uma liogua satânica, só entendida por mim. Vou contando as horas na mudez das noites de insomnia, e cada uma me des- creve com mais feias cores esta morte onde fui pre- cipitado em vida. Havia nas palavras do velho um mixto de resi- gnação e dor, uma grandeza, uma santidade admi- rável. A fronte, enrugada pelos annos e o estudo, pendia-lbe sobre o peito; o filho ainda imberbe, en- graçado, ingénuo, estava de pè a seu lado, mudo, com os olhos no chão. — Como houve mãos tão barbaras, que ousaram pôr diante do vosso espirito, para sempre, a som- 124 / '^ con;íos phantasticos bra eterna^^môrlé? Foi o acaso? Foi a malvadez ,.f que vos despenhou n^essa desgraça? Seria a inveja quem vos supplantou á traifão; vetido-se obrigada a admirar os arte&i^fôfS que »9opoi(Uâ' excedera Obj conlae-me. NSo f nao I teoho lK)rr«>r de ouvir ; dave eustar-vos muito. El-rei ba de satel-o dacudit^vos; O velho ergueu lentamente a fronte ; poisou bs mãos sobre a cabeça ioira do filto^ brincando^ d Js4 traído com os cabellos longos. Depois de um> mof mento de indecisão, começou: — O bispo Joio de Lichtenberg enoèinmêdoii? me um relógio grande para a torre de ^ra^ar^; Era preciso que as horas canónicas íass€im:obsec<^ vadas com escrúpulo ; as irregularidades na^diíd^ do tempo causavam graves inconvenientes ás resats e oíScios divinos do coro. Eu trabalhei doie-^ajoos consecutivos; tinha empenhada n'3quella ebr^^mír nha fama. Inventei um kaiendario em que represen* tava as indicações das principaes festas moveis : a5 lado puz*lhe um quadro em que estavam escriptas em verso as principaes propriedades dos sete pia* netas; ao meio colloquei-lhe um astrolábio, onde os ponteiros notavam o movimento do sol e da lua, as horas e os quartos. Âo alto estava uma estatua da Virgem, ante a qual se inclinavam, ao ar do meio âk» as flguras dosilires Reis Miigos. Ficjíraffi c^^a»^ lados cooi:a-m2i^^tia'>d9^.obfa; soou por toda a parte a fama dldlsí Ohp^notagglomerava-se na praça parà veit. 0;cabãlo(]r6fi6íouir{qaaiitô Qiilrõs oiQSiteJiroii ott as sõctes da;EtioQ|)a(iqQjze&Sim ter ihH' mOQU^ meatoi.egiiak Gbokoi ii6pittlii-oT'^uflaa:iidi(e,'a«tai^ ea descaiiçaado <ãa trabaibaiassidiic^ hnpifDho que levava^ iquaôúi) ^ef bateram i pprfa^ Víoraca dizairt mei op» d Fdogiã esta^va. panado, Levao46i-'iãe h pressa, atterrado, confoi^o, e dírigi-oie p^ a-tor? mciQoanâo.ia siubindo^ e! ji :a omi akiiFa verUgi- nosi, apagflíratn^se de • repente os i^ot»Dte$'; m- cpin Hie' âoompaoliavaaiy lançaram mão dq mxn pi^a ím# pifeciflitar; a&jiishas {H^eDdiamrmoíàar {esdâsil^íiWA Iam, eoHia^tsnaotdadd do amora vida. Por íinli eaocades/ agatraram-ine, anancaram<-me os olhos. Aii6iJB6ús g^ítos^ os malvados respondiam .qise me dèsse:poc feliz em não ser queimado vivo na pnaffa pu* biica, exposto á irrfião da plebe» por feitíocíro.; que eo tinha pacto com Satanaz, que o evoí^va eomU- nhqs cabaU«tí(^s. com ique forjodava as rodas^ den- tadas. O pobre velho permaneceu um instante silencioso reflectindo no assombro d'aquella noite infernal; depois, mudando de conversa, o embaixador pediu- 1 2G ' ' ' CONTftS PHANTASTICOS lhe paVa teVar o filho, que havia de fazer por certo o relógio para o palácio da Justiça. Não faltaram negações e hesitações. O velho conhecia o talento do Olho, e temia um egual desastre. O cavalleiro jurou protegel-o com a vida, e tr9zel CONTOS PHANTASTICOS taurina f^ía "éslrcmccer as turbas, represenlaodO' lhes ao vivo, nos esgares e visagens que fazia, os terrores ilas penas do inferno. A multidão estava suspensa ante as vociferações do dominicano. —Sabes, (disse um desconhecido para ura caval- leiro ainda novo, que eslava attento) não o conhe- ces? O outro respondeii-lhe em vnz baixa, de um modo qiiasi imperceptível : — Ah, ós lu, Diego Ortis? Bem o conheço pela fama de seu nome. É Pedro de Arbuès. E não le sentes possuído de raiva ao pronun- ciar fisse nome de um hypocríta e assassino? — Assassino? — Sim! Bem o deveras saber, porque é a ti a quem compete a vingança. Eile pertendeu por lodos tis meios desposar llernanda, tua irmã. Lembras-te? Era rico, e teu pae desejava com todas as veras (1'alma este enlace. A infeliz menina resistiu sem- pre, até que se viu obrigada a professar em um mosteiro, abandonada da família. Não é verdade isto? Ferido no orgulho, elle meiteu-se a padre, disfarçon-se debaixo da cugula monástica e fez-se MU Director espiritual. Matou-a lentamente com jejun^ e macerações, cora .a lembrança continua UM ERRO NO KALENDARIO / 1 \ 1^7 ' ■ da tentação e da condemoação eterna. PcJbre' Her- nandal o mundo disse que morrera/como uma sauta; Deus sabe que desesperos profundos Ibe abalaram a vida, e quantas vezes, no iatímo da alma oppressa, não amaldiçoou a hora do seu nas- cimento ! — E como sabes isso ? — Como o sei? Eu digo-te só que a vingança fião dorme. Também tenho um legado de sangue a cumprir. Era meu irmão o apaixonado, o eleito de Hernanda. Se ha nada mais santo do que um amor que nos acompanha desde a infância. Âlonso Ortis, doestado pelo rival audacioso, bateu-se gene- rosamente e caiu ferido, morto à traição. Já compre- hendes tudo. — Inferno! Para que me disseste essas coisas aqui, entre esta gente ? Sinto a convulsão da raiva que prostra, a sede de sangue que me atira para elle. Hernanda 1 a desgraçada, a silenciosa, a tímida, que tudo soGfreu e nunca soube queixar-se I Eu quero trocar todas as tuas dores por um prazer egoísta de vingança. Fala-me Diego Ortis ; o que queres de mim? — Quero prudência! Eu tenho esperado dia e noite» por toda a parte, e nunca o tenho encontrado ! nunca 138 ^ / ^ CONTOS PHANTASTICOS esta mãoAleixáa de repousar sobre o punhal, e ainda me parece que não é chegado o momento. A este tempo o padre estava na peroração do discurso; a turba balia nas faces, consternada, por terra. Os dois vultos permaneciam de pé, insensí- veis. O Pregador desceu do púlpito e vinha acer- cando-se d'elles com um olhar ameaçador, para reprehendel-os de tamanha irreverência. O joven fidalgo precipitou os planos de vingança, e arreme- teu com o punhal no ar: apesar do impeto com que foi brandido resvalou sobre o habito que encobria debaixo uma armadura cerrada. Ergueu-se um sussurro repentino. Era impossível a salvação ; com a anciã do desespero Diego Ortis descarregou-lhe promptamente sobre o craneo ton- surado a sua espada de cavalleiro. O povo alarmou-se e ia a precipitar-se sobre os facínoras ; recuou de horror diante da impassibilidade dos dois. A esta- tura corpulenta do padre tomar as proporções de um Goliath, derrubado, banhado de sangue negro, a massa encephalica derramando-se pelas soturas fracturadas do craneo. Fazia horror. N'aquelle mesmo dia os dois assassinos foram penitenciados; interrompeu-se a missa, e a procissão proseguiu levando-os para o Quemadero, onde, com UM ERRO NO KALENDAR10 OS demais, foram devorados pelas chamm^. Segui- ram-se as pesquizas, as vexaçSes e os sequestros ; com seus processos tenebrosos a inquisição lançou a rede por sobre muitas famílias. A Hespanha era, como se disse, uma grande fogueira. Mas como ha uma antilhese fatal na natureza humana, manifes- tada muitas vezes, a cada instante da vida, na tran- sição instantânea do sublime ao ridiculo, Roma pa- rodiou também esta scena sanguinolenta do drama tétrico de Torquemada na farça jocosa da canonisa^ ção do frade pregador, que ainda hoje se adora nos altares e de quem resa a folhinha com o nome de S. Pedro de Arbués. Ora pro nobis. A ADEGA DE FUNQK CONTO TIRADO DAS NOTAS DE HOFFMANN A ironia, quando não é despertada pela lacta in- cessante de contrariedades imprevistas, que cercam o espirito de duvidas e desesperos, e o deixam na prostração da indifferença e do cynismo, é uma doença, uma febre lenta, que vae devorando a exis- tência, depois de a ter despido de todas as alegrias. O riso com que ella se traduz, que e a expressão que mais de prompto lhe acode no accesso do phrenesim suscitado pela vista repentina d'um contraste, para quem o comprehende, é uma visagem infernal, um esgar que gela, um arremedillio de cadáver sacudido por uma pílba galvânica. A gargalhada è também a linguagem das grandes agonias ; é esta polaridade mysteriosa da nossa na- tureza dupla, constituida jà em aphorismo : os ex- 1412 / / ÍCONTOS PUANTASTICO^ '' í y Irernds to£atiíse. A ironia, filha do mesmo princi- pio supremo, é a impressão abrapla de uma idéa infinita que se compara com ou Ira finita, cuja dis- paridade intuitiva desperta em nós todas os cam- biantes do sentimento cómico. A primeira manifes- tação do cómico na vida foi por certo o grotesco ; Susarion e Thespis caracterisavam os seus persona- gens com borras de vinho. EUe apparece-nos no mundo moderno como uma arma da burguezia con- tra a pressão do clero e as extorsões dos senhores feudaes, na Festa do Burro, nos serviços, nos /a- bliaux, nos baixos relevos e goteiras das cathedraes. O pico, a agudeza do pensamento estão completa- mente materíalísados na imagem; eis o cómico pela sua face visivel. O humour é um grau mais elevado; no contraste que se funda na antithese da acção e o pensamento, a forma não corresponde, contraria mesmo a ex- pressão da idéa, d'onde resulta uma monotonia triste ; o esforço do que procura alegrar-se infunde nos que o contemplam uma melancholia indefinida, como na Viagem de Sterne. A ironia é a impossibilidade de conciliar os ele- mentos da antithese, ou o contraste que gera todo o sentimento cómico : o desespero de Hamlet pro- A ADEGA DE FUNCK / V / 14i pondo ao seu espirito o probleraáí insolúvel í eterno : To he OT not to be that this the question, Â imaginação d^MoíTmann simiiha um kaleidos- copo onde estes trez cambiantes do sentimento se reflectem, confundem, se cruzam em direcções in- finitas, formando um espectro a que chamamos o phantastico. A ironia, o humorismo e o grotesco sue- cedem-se, como phases da sua inspiração. Quando elle sente estas inversões do systema nervoso, an- nuncio da tabes dorsalis que progride de um modo irremissivel, o pensamento enlao dà forma a todas as vertigeoSi; a dôr torna a creação pessoal, capri- chosa; os retratos que elle faz^sao quasi sempre caricaturas, a incarnação de um riso de desçspeco. As bebidas e o seu cachimbo de Kumer vem dis- trail-o da consumpção que elle observa a cadS ins- tante em si. O fumo que se ennovelia enl formas extravagantes no ar, e se dissipa como uma chi- mera fugitiva, representa-lhe os typos que reproduz nos seus contos. Ao fogão, na concentração inlima da familia, o cachimbo povoa-lhe o aposento de sylphos e gnomonj, que embalam a phantasia en- CONTOS PHANTASTICOS U4 '/ /, levada em soulios incriveis, com musicas estranhas que o deliciam no egoísmo do soilrimeato que o corróe. EUe lem uma affeição particular às pes- soas espirituosas, porque lhes suppõe talvez a veia sarcástica proveniente de algum estado mórbido. Quando se retrata caricaturisa-se. Muitas vezes acceita-se uma creação cómica, ri- mo-nos, sem saber que a inspiração que a produ- ziu foi a doença que arrebatou Moliòre, o des- alento de Gil Vicente, a resignação de Scarron.Por que não havia Hoffmann distrair-se com o vinbo, afogar n'elle a preoccupação do mal irremediável, que Ibe atacava a espinha dorsal? O seu editor Funck, homem estimável de cara- cter, a quem a especulação não poz em guerra com os que tem a infelicidade de precisar escrever, cod- vidou-o para passar alguns dias na sua residência em Bamberg. Funck tinha uma magnifica adega e lembrava-se perfeitamente d'aquellas expressões de Hoffmann : « Fala-se muito do enthusiasmo que procuram os artistas no uso das bebidas fortes; ci* tam-se músicos, poetas que não podem trabalhar senão assim ; eu mo sei, mas é certo que com esta feliz disposição, direi, quasi sob a constellação fa- vorável, em que se está quando^ o espirito passa da A/ ^ conoepclo á realisa^lo, as bebidas espirituosas ac- «eleram a torreate das idéas. » Fofick tinba o mais excellente de todos os tínhos» como Uie chamava Hoífmaim, o Porto» que no sea nome traz o segredo da soa força. O escriplor ori- ginal era esperado com anciedade em Bamberg. Chegou em uma tarde fria. O ceu estava escuro, carregado de nuv^s ; relampejava a espaços» como o preludio de uma grande trovoada nocturna. Quando a natureza é tríste sentimos uma vontade de nos reconcentrarbaos ; o lar domestico é a grande poesia do norte. Um dos maiores castigos no an- tigo direito germânico era a pena severa expressa n'aqaella formula romana interdictio tecti; o banido i comparado ao lobo solitário; a casa era arrasada, tapado o poço, extincto para sempre o fogo do lar. HoSmaon esquecia todas as dores ao abraçar aquelle amigo ; com toda a liberdade de uma con- fiança intima sentou-se logo ao piano. O pbrenesim da inspiração fazia*o percorrer desesperadamente o teclado. Era a sua ultima composição» meio impro- visada com o jubilo que sentia. Começou um canto com uma voz desentoada, que fazia arripiar os ner- vos ; parecia que estava em delirio/ N^isto um tro- vão .rebentou com um estampido soturno. 10 rfiftoK ^^ Yíjo- U6 /■ //^ CONTOS PHANtASTIOOS —4 Dáturêza, disse elle para Faa<^, esoarnece^ft de mim, parodJa-me a voz roufeaba. Ha bastaoté dias que teDho sentido bumor para o romântico reli- gioso. Jovis omnia plena IHQíe, nSo sei se é o ex- cesso da alegria, predomina em mim uma ezalta- i;ão bumoristica levada até à idéa* da. aberração. ■ Funck coDtiauava silencioso. HoGfmann permaoe* U8U albeiado alguns instantes, como levado pcH* mna serie de deduccSes, que absorvem Eatalmente toda a contenção do espirito. Eslava a dÍagnosticar-se ; a prolongada doença dera- Lhe um certo coabecimento do seu estado. Depois proseguiu': — £l notável t Que diversidade de sensações agorai Disposições bumoristicas coléricas, com um bumor musical exaltado, e sentimento de um bem eaUf com indiferença. Como conciliar tudo isto ? O sys- thema nervoso inverte-se-me de dia para dia. Restrugia um aguaceiro espesso. Ha do cair da agua uma magia, que adormece. Vamos, disse Funck, interrompendo aqoella reflesto penosa, eu tenbo um excellente remédio- Yejo-te tiritar com frio, de um modo que me tira iltsfação do agasalbo que presto a um amigOj AbrabSo deve estar com uma tempera-' suave ; r«fugiemo-iios lá. A AM6Á DB FTOCf - / / . // *47 -^ Gomo isso era bom I mas iafeUzmirote as azas ia poesia nSo nos desprendem da terra ; a realidade é peior do que o sol para as azas de ícaro ; ella toea-Dos o corpo com mais aspereza do qae o Tellío Satan quando experimentava o desgraçado da teita de Hus. Agora acbo^me divordado com a poesia; com a musica, com a pintara ; s2o as três fúrias que sob uma apparentía seduetora surgiram «das sombras do paganismo para attribularem-me o e»' pirito. — E por qae n9o bavemos refugiar-nos; em uma tarde doestas, no seio de ÂbrafaSo?— disse Punck procurando interromper a corrente das idéas affli^ etívas. — N3o é tio dificil como pensas. Nem sSo pracizas azas para ir lá. Para descermos basta obe« decer á lei eterna da gravidade, que sobre nós pesa. Nio sabias ainda que a gravidade é o nosso peecado original ? Ho^mann sorriuHse ; o seu amigo tomou xm tom bumoristico para se adeqwir ao caracter â'elle n'esse dia. —Apesar da- facilidade que apresentas aincb nãc resolvi o poblernsv Gomo havemos ir procopar con> forto ao seio de Abratl9o? — Segue-me.' 148 ' ^ CONTOS PHANTABTIQOS FuDck caminhava adiaote com um ar inctorioso. Hoffmann sorria*se, com um modo duviãoso* para que o riso o defendesse do logro que e^pftrava. Desceram uma escadaria escura ; uns ferrolfaos pe- sados gemeram, como se abaixasse orna ponte le- vadtça. Entraram. Era um subterrâneo fundo^ aUu^ miado por um lampadário de bronze. Depois de affeito á sombra, Hoffmann pôde discriminar gran- des toneis dispostos, como uma longa fila de cacfaaei- pansudos cónegos. Era a adega do seu amigo Funck. De facto bavia alli uma temperatura tépida, de fermentação. Ne- nhum olhar importuno através da abobada calada. — Se os velhos patriarchas, principalmente oosso pae Noé, não trocariam de boa vontade a toa adaga pelo seio de Âbrahão t — Hoffmann estava animado de uma alegria indisivel ; era um homem dos ex- tremos ; a sensibilidade excessiva deixava-the apre- dar os mais desapercebidos contrastes, era {M)r isto que elle tinha mais do que ninguém o genus trri« tabile vatum. Mal acabava de proferir aquellas palavras, quando se atirou de um salto, com uma loucura de <:rflaDca» e se escanchoa em um tonel. Funck seguiu o exemplo. A ADBGA M FONCX -«* A vida é um grande mar, qde estiía %m con- vulsões intermináveis; felizes os que ao cairem na voragem encontram doestes detpbins, que os tomam sobre si e os levavam» cantando, a porto segure. — Foste feliz na imagem, principalmente, por- que o vinho desperta^me o humor erotico-musicaU e os deiphins, se dermos credito a antigos fabula* dores, eram levados pela magia da musica. — E cor meçou a cantar alguns trechos da sua opera a On- dina^ que só interrompeu para levar à bocca o si- tSíodelata que estava mergulhado na pipa. Qoffmann tocava a realidade dos seus contos. **-'Este nao dá pelos calcanhares do teu dilecto Porto? — accudiu Funck; o vinho de Noits é dos oielliores de Bourgonha^ e, graças ao cèo, podemos nadar em mar de rosas, A noite corria tempestuosa e tétrica : os trovOe; rebentavam com uma detonaçSo tremenda. Nos ares, coriscou um relâmpago repentino e veiu iltuminar com um clarSo pallido o rosto dos dois amigos, que tocavam n'este momento os copos espumantes. Era um quadro com toda a verdade e simplicidade de Teniers, como o próprio Funck, em uma nota de uma edição do seu amigo, confessa com aqueila ingenuidade allem9. I5S j . COffTDS PHAHTASticOS Deixa também Tazw-te uma revelação tremeoda: MveDeoei-te. Hoffmaon não pAde tirar do conto a MonHâado que se espera, e caia, esquecido do mando, entre oi tooeis do seu amigo. REVELAÇIO DE UM CARACTER Como eU| elle também vivia ignorado, mas ocio- so, distraído» fumando sempre, debruçado de uma janella que deitava sobre o mar. Passava boras esquecidas assim, a contemplar as ondas no seu eterno refluxo, imagem dos pensamentos recônditos, das aspirações impossíveis, que tempestuavam na solíd3o de sua alma. Muitas vezes me disse elle, quando a indiscrição da amisade o ia interromper do quietismo contemplativo que o absorvia, e lhe perguntava que idéas mysteriosas o afastavam para tSo longe da realidade e da vida : — Se fosse possível exprimir, stenographar na palavra tudo o que se revolve na mente, o homem mais sábio pareceria um tolo; se fossem coêrci?eis todos os sentimentos, que passam e se succedem no coração, o, homem mais santo e simples appa- recer*nos-bia com a hediondez da infâmia. .\ 154 J { ^êompn raANTASncofl E coDlinoava, embebido n'am seismar inâefiotvélt extranbo a todo qae $e passava em volta d*elle, como na reconcentração de um grande desgosto. Outras vezes mostrava uma alegria irrepressiveli im** pacientei louca, sem motivo, mas cada Kso era o preludio de imprecações e ironias pungentes» que vibrava dos lábios acerados: o enunciado breve e incisivo d'uma grande verdade, mas triste, horren- da, incrível, e infelizmente verdadeira, que a sua lucidez de doente descobria. N8o sei qual o torta* rara primeiro, se a duvida. ou o sarcasmo. Elle submettia á analyse fria os sentimentos mais puros e Íntimos, volatilisava-os pelos processos de uma dialéctica irretorquivel, e por fim o ultimo cânon de sua lógica era uma gargalhada irritante que fazia gelar de medo. Elle mesmo se doía de sua cruel- dade» era o primeiro a accusar-se e a procurar cor- rigisse. As linhas de sua physionomia davam*lbe ao semblante uma forma angulosa, de energia ; o olhar incerto nSo repousava, como quem observa nas sombras de um abysmo insondável* nunca o fitava, temendo talvez que lhe surprehendessem na expressSo fugitiva que o animava o ridículo, que. sabia admiravelmente descobrir. Deiíei de procurado longo tevpp ; repugnavanoM REVELAÇÃO DB UM CÂflACTER y <^K8Í aqnelld caractôr incomprehensivel ; para mofloma- niactí era insupportavel» para excentricidade des- presivel. As contradições tornavam-no absurdo. Cus- tava-me vel-o na consnmpç^o d'esse abandono, oreança e foragido do mundo, sem ter a commoç3o dos grandes sentimentos que nos prendem á vida, e qjàe s3o o conforto nas boras vagarosas do des- alento. De uma vez encontrei-o a ler com uma vo- racidade, como a de Isaías, ao revolver as paginas dos arcanos imperscrutáveis. Procurei vôr se a sua imaginação viva o tornava ílIuminado> se era a cor* sciencía da segunda vista, da percepç&o immediata que o tornava ocioso e inerte : — O que lés? Que livro é esse que um dia te prendeu a attençSo inconciliável ? — Uma terrível obra prima, uma perigosissima e espantosa maravilha d'artel £ um romance de Diderot, que contém em si o gérmen de uma revo- lução moral, o Neveu de Rameau. Nunca leste? É imttossivel observar mais profundamente o coração do bomem, isolar-lhe os sentimentos e reprodu- lil-os em^uma ereaçSo mais brilhante. Somos todo^ como elle. Rameau é a grande contradicçSo da nossa natureza, com a differença qise obra segundo essa força, nSo se contrafaz pelas OMvefiiencías. da 196 -j < tmtú% pHANTAflncos aociedadti; obedece-lbe fatalmente, e é por isto que horrorisa ; as máximas do cyoismo mais revoltante e abjecto, as doutrinas mais subversivas de toda a ordem, vômlhe no dialogo animado, seguidas de sentimentos puríssimos, intençSes boa» e justas, de um modo abrupto, qae espanta. Os seos paradoxos slo os da humanidade, eom a differença que s educacSo os abafa no intimo de nossa eouscienm^ e rtle, o parasita, o musico, o bandido, o desgn* çado Bameau, tem a infelicidade de pensar alto ; deiía ver, atra?és da sua ingenuidade, todas as ptfi- i0es despertadas por desenfreados ínstindos, qoe existem egualmente em nós, mas que os refreamos e os detestamos, como se fossem a degradação nos outros. Este livro 6 a syntbese da philosophia èo século xvm; eila avançou prtncipios de uma ver- dade inconcussa, de ras9o profunda^ a rasSo uni* versa), de todos os tempos, mas que foram com* batidos e ainda boje nSo sSo completamente admls^ siveis, por esta maldicta necessidade de transigirmos com as conveniências. Esquecera-se n*aquelle dia do habitual silencio ; falava com uma verbosidade febril; observasses peivetranttssimas, rasgos de uma intuição pasmosa lampejavam brilhantes, no decurso da conversaçto. RElEIAÇiO M UM GiRA£TER / ^Ná$7 Bip^mBando-sd sempre com diffiealdaâer ^0(3o, Í0rraTam-Ibe as palavras fáceis e promptas. com «ma nitidez qae acompanhava as mais delicadas «alyses. A este tempo> assomou a ama jaDella fronteira ao ^ea quarto uma vistaba, que vivia bonestameut^ ia desgraça, irmã d^aquella flor de Magdala, cal- Otâa aos pés pelos que não comprebenderam o im<- pulso dos sentimentos que a transviaram. Â poère ti^albava e distraia-se a vèr os que passavams cmiiava e ria esquecida do seu opprobrio. Estava vestida com uma eôr triste» que Ibe realçava a e^^T prassio dolorosa. EUe viu-a i cumprimentou-a com wi sorriso leve, que traduzia um epígramma^ que liíva compretiendido. Depois voltou-se para dentro : — Ha uma affinidade intima entre a mulber e as cores.; a escolba, a preferencia, a seducção por uma» é a linguagem de um sentimento recôndito, que resõa dentro em si, e que ella nao sabe expri- mir, é o symbolo na sua forma mais poética e sim- ples. A mulher é sempre uma creança, chora e ri ao mesmo tempo; como sente mais do que pensa, qaer mais do que pôde. A grande contradição que foz com que realise as nossas aspirações vagas e. ideaes t Gomo uma creanoinha que tem séde^ k 160 '■ s- yCODTOS raàNTASnCOS ; t ~ ASerem-lhes- as acções pelos factos valgaree, de to- dos os dias, e a disparidade faz com que se Ibes cbame um desgraçado, um extravagante, um doido. — Revoltas-te contra o eenso commum? — Revoito-me coDtra toda a generalidade. i}tw procura absorver o individuo, assimilal-o, cootan- dil-o. Quero que a individualidade se coastilaa e imprima o seu caracter, de modo que o tempo « o espaço attestem a passagem do grande homem. — Bevoltas-te contra a natureia? — O ' que é a natureza diante da obra d'arte ? Um verbo insigniricativo, que apresenta todas as formas de que o bello pode revestir-se, o archetypo material que só se espiritualísa no typo, que é um facto da consciência humana. Quando na imitação do archetypo a verdade é tão exacta, que o typo se confunde com elle, o sentimento que então disperta é incompleto, porque não deixou perceber que á determinação do facto presidiu uma consciência. O bello é uma creação toda subjectiva ; é despertada poía natureza, mas não existe lá ; escoibemosas ima- gens em que melhor a podemos manifestar nas soas mulipl ces e variadas realisações, as caracieristicas que a Induzem fora de nós. O bello è absoluto. ^So existe o feio, que é apenas uma bypotbese negativa BETfiLAÇÃO DE tM CARACTER ^Z 181 em que se funda a syàthese das realis^^aiffôti*- cas; o bellot o ponto onde convergem todas as evo- luções da forma, incluídas na polaridade do bonito e do feio, e gravitando em volta d'esse principio ufiico, eterno ; è o ideal que as faz tender para elle. O bonito e o feio ^o as duas relações que nos levam à comprebensão da idéa do beiio. O bonito desperta- nos esse sentimento espontâneo por inspiração in- tuitiva ; o feio leva ao mesmo resultado pela reQeião. O Saipo, de Victor Hugo, asqueroso, repellente, de- pois de idealisado, é profundamente bello. Quando se espiritualisa a imagem, e è esta a missão da arte, o espirito ha de amar a sua creação. O estatuário delira com o amor de Galatbea. Não posso deixar de obedecer a esta fatalidade do meu caracter ; deixo-mè arrastar pela contradição. O beHo tem algum tanto de convencional; assim admiramos uma illuminura da edade media, os arabescos de uma janellagotbica. O que parece convenção não é mais do que a refle- xão, que nos faz descobrir n'aquillo que contem- plamos um progresso do espirito, e nos mostra a tendência da natureza a ser espiritualisada. Pelo sentimento do beHo se obtém o desenvolvimento e elevação que podem prestar-nos na vida a religião e o direito ; o verdadeiro e o justo não são mais li 162 4-1 / . CONTOS PUANTASTICOS do que as maniílístações do bello no mundo moral. Ha só uma religião, é a da arte t O pantheismo è a suprema creaçao. poética, a jdentiQcação dos sentimentos do bello e do verda- deiro. Mesmo o direito primitivo teve um caracter pantbeista ; a natureza é animada, é testemunba na accusação, é pura como noordalio, firma o contrato, submette-se também à penalidade, tem personali- dade ; os animaes compareciam também em juizo. A arte sobre tudo í ella suppre a sciencia e a ob- servação, pela intuição viva ; a realidade é contin- gente, variável; o ideal, a creação pura do bomem, ê intaogivel, eterno, emquanto a obra de Deus se converte em pó. Sacrifiquemos-lhe tudo na vida. — Mesmo o amor ? — O amor ? Rio-me da tua credulidade. Ainda fazes uma religião d'esse sentimento egoista, que procuras elevar acima da animalidade. Querem afie- rir as affinidades electivas pelo que vêem nas pai- xões descriptas pelos poetas. O amor como o ima- ginas, só existe nas obras d'arte ; fora de lá é uma falsiScação, uma loucura, um impossível. Eu explico o egoismo olympico de Goethe, recusando o beijo de Frederica, a dedicação syrabolisada no que a mulher tem de mais apaixonado e expressivo. Pede REVELAÇÃO DB UW CARACTER /^ 163 ao amor a paixSOi como pedes á natopéza^a pdj;e^* gem; depois de te possuíres de todos esses senti- mentos, eleva4e aeitôa- da passividade peta reflexão fria, calculada, e terãs a consciência das formas com qae has de fiazer* sentir os outros, dominal-os, pos- suir os segri^os de suas emmoç5es, e és grande t Não fdto mai6 nisto ; sõ fica bem na bocca de Dyo- tima. E começou a assoviar uma ária caprichosa, pas- seiando vagarosamente ; depois voltou-se para mim: — Ha ainda que descobrir na musica ; falta-lhe realisar o principio da ironia, como ba em todas as fónoas particulares da arte. A poesia tem a sa- tyra; a pintura a caricatura e o grotesco ; só a musica precisa attingir a antithese do patbetico. O pathe- tico e a ironia são os dois poios de toda a evolução esthetica. Todas as creaçoes na arte saem doestas duas paixões oppostas. Uma é o natural, a outra é o não natural como natural ; uma sustenta o sublime, a outra o ridículo. Ao pathetico eleva-se todo o que sofl^re ; só o riso é a força das grandes individuali- dades. Ri-te de tudo ; o riso denota sempre uma superioridade. Não o comprehendia ; o seu riso pungente de ironia desarmava-me. O geoio é uma doença, uma 164 / /contos phantasticos disformidade ;/ que nos outros me parecia egoísmo, tfelle não sabia como chamar-lhe. Para elle a gra- tidão era a justificação do servilismo ; o sentimento religioso uma tradição da ignorância primitiva ; o amor de mãe uma impertinência, que só se dà en- tre os animaes da classe dos mamíferos, pela con- versão do habito em instincto. Explicava tudo as- sim. Parecia uma alma devastada por longas ab- stracções, que andava errante no mundo, à busca de uma formula impossível. A analyse continua da- va-lhe uma certa malvadez, tornava-o intractavel. O caracter faz-se. Quaes seriam as círcumstancias que o transformaram até àquelle ponto ? Indaga\^-o como um problema interessante. Fui por deduc- ções pequeninas. Muitas vezes me falava elle da harmonia plástica das formas. Contou-me uma his- toria original : uma menina engraçada, cuja belleza realçava com uns dentes alvíssimos de jaspe; a vaidade de mostral-os tornara-a jovial. Infelizmente tropeçou em uma escada e quebrou um dente. Per- dera o seu melhor encanto. D'ahi em diante, pro- curando encobrir esse defeito, tornou-se taciturna, melancholica, aprehensiva, até que se foi definhando e morreu de desgosto. Contava-me isto como uma grande verdade, como doutrina que professava. s REVELAÇÃO DE UM CAnACTER /y/ 16 Admirava o costame de Sparta, que mandava des- penhar de uma rocha as creanças disformes. Pobre rapaz ! Gomo uma circumstancia pequeníssima lhe influiu no caracter e na existência. Elle era aleijado de um pé, como Byron, e era este o seu desgosto intimo, que o trazia solitário e o tornava aggressivo, porque se via amarrado a um ridículo. / ^/ . X í o SONHO DA ESMERALDA < Oh ! meu amigo, oh I mea poeta, tu não sabes o que é um rapaz que sae aos yinte annos da sua agua furtada, sem conhecer o mundo, ignorando a vida, tendo vivido alimentado por sonhos impossi- veis, rico de todas as leituras, levado por ambições altivas, que o fazem grande, sentindo muito, amando tudo, e que o acaso atira aò meio de uma cidade opulenta, onde ninguém se conhece, onde todos se iguatam e atropellaml Foi quando comprehendi aquelle tercetto de Dante, de uma profundesà no- cturna, qué me abysmáva, táda ve2 que o repetia na liyente : No melo do caminho doesta vida Dei poir mim na amplia de selva escura, Pois que a vereda certa era perdida. iNio sièes eom^ o ruido de uma tidade immensa, ^ dédtio das ruas» t totranhesa e tndifferença dos bolei f68 que ^ass^avam, me tornava solitário no meio cEas multidões. Tantas vozes perdidas no ar, e neaboma para mim t Tantos olbares dístrahidos, e eu confun- diado-me desapercebido I Tantos braços cabidos com desdém, e sem nenhum me estreitar a si. Parecia- me o tumulto como um naufrágio em que a anciã do salvamento dos torna egoístas, insensiveis para as agonias dos outros. Todas as aspirações que me fizeram deixar o re- tiro benigno onde me voaram os primeiros annos, mostrando-me o mundo como uma grande festa, que me despertaram o desejo de ser também um dia conviva, iam-se apagando, abandonavam-me como no enconlro fortuito de um desconbecido. Sentia-me pequeno, incapaz de lutar, de me impor á admira- ção dos outros. O que leria sido de mim nas horas monótonas do desalento, nos longos dias do desamparo, se [^o fora a poesia I Até enlSo tinha ellasido um folguedo, um brinco infantil, innocente, um vagido tímido e suave da alma, que anceava a luz, como uma bor- boleta prateada antes de romper a cbrysalida do- jlitarna. Sem ter quem me falasse, pedi á poesia os antigos carinhos, um alento de esperanças, um «valho para refrescar a aridez do dezerto em qui o SONHO DA ESMEBALDA^/ /f\ 169 me via. Ella, a irmS dos tristes, a^alina/los que soflrem; como veiu terna, espontânea, compassiva para consolar-mel Cantava, como uma creança, quando tem medo e procura esvaecer os vultos ca- prichosos que lhe voejam na phantasia. Foi a poe- sia também que salvou o desgraçado Jacopone, qnando, abalado pelos desastres da vida> errando pelas ruas desvairado e doido, apupado da plebe^ perseguido, veiu bater às portas de um mosteiro, d'onde egualmente o repelliam. Foi ella que lhe deu a paz da cella e a serenidade da contemplação. Oh santa e divina poesia! bem hajam os que choraram por que te descobriram e trouxeram à vida, como uma pérola nunca vista trazida do fundo do oceano. Bem hajam os que ainda choram, por que te guardam em si, como uma vestal soUicita ateando continuamente a labareda do altar. Bem hajam os que hSo de vir para sofifrerem, por que nos comprehender3o sentmdo-se aliviados. Andava pela cidade sem destino, vagabundo ; eu mesmo ia comprar o alimento para o dia, e eno- java-me esta guerra mesquinha e vil do pequeno commercio para os que chegam incautos, inexpe- rientes. Os fundos, e bem poucos que eram, iam-se reduzindo de dia para dia ; estava quasí sem di- i i72 7 -- 7 'CONTOS PHANTASTICOS / >-■ O estudo e a paixão debalíam-se, arcavam, proca- ravam mutuamenle supplantar-se. Eu tiolia acabado de ler a Notre Dame de Paris, e achava em mim não sei que analogias sinistras com Clandlo Frollo. A JVoíre Dame de Victor Hugo é a rosa emmarche- cida, que rejuvenesce ao sol do mysticismo, ê a Turris ebúrnea por quem o poeta se apaixona no sublime detirio da arte. Cláudio Frollo I o desgra- çado arcediago deixou também correr tranquilla a mocidade no retiro do estudo ; depois a Esmeralâa enfeiliça-o, dançando, no volteio vertiginoso das praças. São duas paixões que se combatem. Qual d'ellas triumphará? A fatalidade do impossível? Eu não conhecia o labyrintho de ruas da cidade populosa e immensa. ía em busca d'e1la sem saber para onde. Enconlrava-a quasi sempre, por uma coincidência fatal. De uma vez, lembra-me ainda, foi quando a vi mais bella do queimnca, mesmo do que todas as mulheres. Estava confundida en- tre a multidão, que ' a abafava na sua onda ; mas para mim realçava tanto com um carbúnculo que reílecte em si a luz de todos os cirios. Via-lhe na expressão languida e curiosa a alma de todas as almas dos que a cercavam. O povo amontoara-se para ver subir aos ares um balão. Era iim dia ds o SONHO DA ESUERMDK / ,^y ^73 alegria e de festa; qaando a descobri e$diva c^ os olhos erguidos para o ceu. Oh I se ella soffres se implorasse a Deus uma consolação» não estaria mais sublime e radiante. O que a fazia confundir o azul dos seus olhos, com a limpidez do firma- mento era a curiosidade de creança. E contemplava o balão que subia, alheia á vozeria da gentalha. Desejaria elevar-se também às alturas, e então es- tava scismando no devaneio doesse desejo? Quem sabe os caprichos que passam pela alma de uma mulher? Quem pôde contar todas as ondas que faz uma brisa perpassando levemente à flor das aguas? Quem pode dizer como se formam todas as visicu- las da espuma alvejante que se desfaz? Quando baixou os olhos à terra deu com os meus, que a conteipplavam, sorriu-se. Oh ! como aquelle sorriso me faria esquecer todos os pezares, me daria co- ragem para todas as luctas, me insuflaria alento para^ os mais inauditos esforços, se ella se não sor- risse a$sim para todos. < Para todos t É este egoismo do sentimento que gera os nossos males, e exarceba a mais terrível das paixões, a mais selvagem e vil, que e só grande pela loucura. Eu tinha ciúmes de todos, porque ella sorria pródiga de encantos, tanto para os que 174 / i^ I CONTOS PHANTASTICOS passa vaiá indiÍTereDies, como para o que a contem* piava com o desinteresse com qne se Q}ba para nm mármore antigo ou adoraQdo a soa morbidez de Ma^ dona, como para aquelles espíritos baixos e abje- ctos que a fitavam desassombrados» preoccupados de um desejo faminto e estúpido de sensualidade. Creança e indiscreta, seria a innocencia que a fazia sorrir para todos, como uma borboleta que vôa de flor em flor, ou como uma rosa que embal- sama de perfumes todas as virações que passam? Eu não sabia e tinba medo da verdade. O amor triumphava completamente do estudo. A verdade que procurara incansável no ardor das vigílias, agora já me nâo mostrava os mesmos encantos. Queria que se escondesse, que se não deixasse to» car por mim, como um arcano divino. Quem po- desse viver sempre illudidol Ohf verdade! ver- dade! para que vens agora, que te não busco, acordar-rae tão cedo do sonho doirado? A multidão dispersou-se ao vir da noite; e foi seguindo para onde ella habitava. Ia perdido a dis- tancia, sem conhecer as ruas; a pequena, dístra- hida, como por descuido olhava para traz. Depois que soube onde morava, procurava a cada instante vel-a. Havia uma fatalidade que me atirava para o SONHO DA l-^SMERALDAV /) 175 / Ar-- essa mulher* Só, no meio de uma cidade gra^nde, desconhecido» amava aperdíçSo, e sentia-me arras- lado, sem ter ao meoes um Tiberge que me sal- vasse^ Gomo o amigo do iafelis Des Grieux. O fu< turoJ uem ji podia vel-o, com a vertigem que um olhar- fosotoador me causava ; apagava-se esse ideal (]ue me dera. tantas vexeis coragem nos transes c proi^açõe» da vida. Ria-me do futuro. E que è o foloro ? De que me vale preparal-o, consumindo a vida^ se me foge antes de o gosar ? Viver obscuro t embCMra Q'uma mansarda, mas ter um dia, ao me- nos, a mais pequena realidade de tantos sonhos i Ter que apalpar entre as visões brilhantes, sem corpo,, e que nos mentem sempre. Viver obscuro \ Que haverá melhor^ quando se tem ao lado aquella que SC ama e resume todos os encantos e riquexas do mundo na mais pequenina de suas falas ? Sentia-me escorregar lentamente para o precipí- cio ; a paixão dava*me uma lucidez com que expli- cava a loucura e a justificava diante da consciên- cia que me accusava de instinclos baixos, sem di- gnidade. Âpparecia-me à janella todas as tnrdes, sentava-se ali e costurava. Tinha um orgulho In- disivel ao lembrar-me que, do entre todo aquello bulício de gente desconhecida, havia uma mulher 176 / %^. CONTOS PHANTASTICOS que pensava^ em miai e me estava esperando. O amor tomava-me timido; qaería falar*lhe e nio sabia. Pedi então à poesia que* falasse por mim. Para um amor poro» elbereo, que se esconde e não se atreve a declarar-se, uada o expríoie mellur no seu vago do que um soneto. Estudei esta (dmiai» a mais completa das formas lyricas. Elevado leoedo a ode, melífluo e simples como ó madrigal, san- tencioso como o epigramma, é a synthese de todas as formas do lyrismo. Como o não desenvolveu o geoio da Itália, nas suas elevações erolico-mysticas! Nas duas primeiras stropbes do soneto, o senii- menlo revela-se pela imagem, occulta-se «ob eíla como indeCnido, intangivel ; o predomínio da pa- gem tem a quadra, forma livre para as repre^a- tações do mundo exterior. Depois é que o senti- mento se mostra no seu explendor absorvendo em si todas as potencias da alma ; é o tercetto que o traduz, numero fatidico, que se imprime mysterio- samente em todos os factos do espirito. Do acGordo entre a imagem e o sentimento, provém a dlversi- sidade das formas poéticas. Se a imagem se mos- tra na sua complexidade finita, a poesia tem um caracter didáctico e descriptivo ; se o sentimento se sobreeleva à imagem e se manifesta na sua sub- o SONHO 0A ESJilEnALDA / -^JL^Ml jectividade, eis o lyrismo puro. É por isso que o soneto 6 a forma mais completa do iyrismo. San- tificaram-n'o Daotei ao retrato do amor ideal» na Vita Nuova; Petrarcba, exaltando o amor religioso de Laura na solidão de Vauclusa; Miguel Ângelo, esse Protheu que encarna todas as formas do bello, e Vtltoria Cotonna, confidenciando ambos com os so- nhos da arte^ do um modo que ninguém compre- hendia o seu platonismo radiante. É também nos sonetos religiosos de Lope de Vega, que se conhece a profundidade de .sua alma sensível» e nos de Ca- mões, que se aspira o perfume da saudade de seus amores. £squecia-mo a discorrer sobre o soneto para evi- tar o ridículo de ter assim cantado esse desvario. Eu a via todas as tardes á janella ; tinha a seu lado um passarinho, que saltitava, chilreando contente, para quem falava, dizejido o que queria que eu ouvisse. Como não perceberia eile estes segredos d'amor, quando o estava embalando com o seu can- tar soffrego, tremente. De uma vez atirei para den- tro da janella este soneto que traduzi do bespa- nhol de Lope de Vega. Não ha exprestíões huma- nas que i)ossam dizer mais : 12 » t 178 // ^;a»NrOS PHANTASTICOS Dava aliiuento a um passarinho um dia Lucinda, e pela estreita portinhola Foi-se-lho a ave das grades da gaiola Ao vento livre, onde a cantar vivia. Enlre-rindo, a niãosinha ella estendia- l^ara o suster ; na dor que a desconsola. Diz (pois como a vergontea se estiola Sem luz, sua face a pallidez tingia) : « Onde vás? por que deixas este ninho « Que de frouxel teceu a doce amiga, « Que a brincar com o leu bico se enamora t> Ouviu-a enternecido o passarinho, Bate as azas para a prisão antiga, Que tanto pôde uma mulher que chora. O qnc haverá na poesia antiga que exceda esle-. primor? Quem soube idealisar assim uma Ugriína? Comprehenderia ella a profundidade d'este senti- mento? E sorria-se de cada vez que lhe enviava novas confidencias, mas do mesmo modo que sí)r« riâ para todos. Para todos ! Sempre esta idéa in- fernal a envenenar-me todas as horas da vida. O poder das lagrimas que lhe descobri, a fraqueza que vence todas as forças, nâo tinha esse mysterio,. quando as derramei ao vcr-me nú, abandonado pela esperança fagueira, que fugira como- o passarinho de Lucinda. Disseram-me... nem eu sei o que me disseram. Fora a màc, a mesma que a susteve nos o SONHO 0A ESMERALDA / •/ 179 joelhos quando a atirou íi vida e a amamènj^li do seu leite, quera a arrojou á perdição. Quem havia de adivinhar que sob um ar de candura, que a cer- cava de uma auréola divina, vergava ujoaa alma óp- pressa pelos insultos dos que lhe pagavam! O que é uma cidade grande! Não se devoram com os hor- rores da anthrppophagia, mas a vida vae continua- mente alimenlafldo-se da vida, Nao sei, niio posso conlar-le tudo. (1864, juiho.) » Um anno depois cncontràmo-nos ; o pobre rapaz eslava possuido novamente da paixão dos livros. Era uma anciedade de saber, não menos funesta, que o amputava para todos os gosos da vida. Não me atrevia a falar no antigo amor; tinha medo de acoírdar-lhe as- agonias que estariam talvez já ador- mecidas. De uma vez, estávamos juntos, vi passar a distancia uma rapariga, um typo raphaelico de candura ; ia seguida por uma mulher velha e trô- pega. Era uma anliihcse que fazia pensar muito. Elle olhou-a e foi acompanhando-a cora a vista, com certa anciedade; depois, como refreado pela re- flexão, olhou para mim envergonhado, corou e disse, procurando esconder esta impressão repentina : — É ella. 180 / ' CONTOS PIIANTASTICOS Não conípreheDdi immediatameDte ; fui bárbaro, pedindo que me explicasse o mysterío d' essas pa- lavras intercotadas. Elle apenas pôde proferir uma, mas que era o resumo de todas as dores e dece- pções, da compaixão que ainda sentia, do ideal a que tiolia aspirado, da fatalidade a que linba suc- cumbido. Olhou-a, ella jà ia longe; depois que a viu desapparecer, disse, contemplando ainda: — Uma ruina! ^ /f/ / o EVANGELHO DA DESGRAÇA Era uma creança linda, linrla como os amores. Os movimentos impensados da infância davam-Uio a cada instante uma nova expressão de candura, faziam amal-a, beijal-a. Ella n3o sabia que estava sõsinha no mundo ; a pomba não tinha a aza ma- ternal sob que se occuUasse, quando viesse o abu- tre pairando para arrebatal-a. Ria descuidada. A graça com que saltava I Parecia um pequeno gato quando brinca. Faltava-lhe pae e m3e que lhe soubessem interpre- tar todos os requebros, 9 meiguice das patatras apenas balbuciadas, adivinhar seus medos, aspirar- lhe os risos, unir-se às suas alegrias, beber-lhe as lagrimas sem motivo. Era uma ilorsinha nascida â beira da estrada, exposta aos ventos da noíle, ao rigor das calmas, ao tropel dos que passam, banhada de perfume I8á * . ^c ONTDS PUANTASTICOS que ninguém vem respirar, dcrramaílos ao capricho das virações. Pobre filha! Como estas plantas que se estiolam o seccam, mal rebenta o gomo que as hade substituir, a mãe morrera ao lraze^a á loi; com cila se foram para a cova todos os caririhos que nos embalam e fazem esquecer as dores por onde se nos dá a conhecer a vida. Sem mãe ! Ninguém sabe o que é ver descer a noite negra. e as creanças que brincavam comnosco cairem de cansadas em um regaço que acalenta, ouvir as -can- tigas que as adormecem e lhe afastam o medo; o não saber por que não temos aquillo também^ .não haver quem nos chame, nos fale e nos conte ma- ravilhas, e nos esconda no calor benigno de um seio que bate por nós. A orphandade? E depois quando os primeiros alvores da mocidade começam a-, doi- rnr-nos a existência, a acordar a um tempo todos os sentimentos bons e santos, não ter quem nos descubra e faça presentir as sarças que nos podem prender, as torrentes que nos podem levar, os abys- mos em que se pôde cair. Uma mãe! Ella nos en- sina a amar com o seu amor. E se o amor inconsiderado da gloria nos arrasta, se a vertigem de alcançal-a dà coragem para nos o EVANGEI^HO DA DESGOiVCA . J83 -' . ^^ affrontar o impoashiel, sacrificar a vida poi' um fumo- que o tempo dissipa, feliz de quem tem uma lagrimai s* da pequenos, tão alegres e vivos, que pulavam, ^omo no vigor da edade e das pai- xões, em umas orbitas encovadas, maceradas pela senectude. Âs cicatrizes, das bailas e espadagadas, miâturando-se com as rugas da velhice, em vez de o tornarem repelienle, davam-lhe um aspecto attra- tente, em que o bom humor que o animava dei- xava reflectir um fundo de bondade, que tem quasi sempre as pessoas que soíTreram bastante. ^E como não tinha elle soffrido? Noivo, casado de ura anno, viu*se forçado a abandonar seu lar, dei- xar a roupa de camponeo peia farda apertada, a choça pela caserna, o nome por um numero, o leito fresco, cheiroso com roupas de linho pela tarimba, e sobretudo a vida sancti&cada da familia que aca- bava de formar em roda de si, pela guerra em que se ia confundir. 188 /' -. / CONTOS PHAXTASTICOS Fora no tempo da guerra- peninsular. UmA es- trella funesta o acompanhou sempre amparando-lhe a vida para sofrimentos inauctilos. Nunca entrou em acção donde nHo voltasse ferido; todos galar- doados sempre, d'elle ninguém relembrava! A. jo- vialidade dava-lhe forças para resistir à oppres?»3(> da injustiça. De uma vez levaram-lhe os dedos qufisi todos, porque em uma carga de cavallaria. leve de fazer das mãos capacete. Retalhado, calcado aos pós. do esquadrão, ainda aU' a sorte acintosa o guaifdoa para novas provações. O pobre soldado nlio :$abia queixar-se; por fim como nâo pudesse. dar ao ga- tilho, passarara-no para a artilheria. Ahi subiu de ponto a sua infelicidadeé Em up^a investida a peça que descarregava esteve qu^sl nas mãos do inimigo; era um magnifico apreza- menlo- Exasperado de raiva, encravou-Ihe o busjl, para não fazer mais fogo. Depois que a levassem os contrários! Nisto o pelotão foi distraído para outro lado. Julgaram então o misero soldado traidor aos seus, e descarregou-lhe o general um golpe que o estendeu por terra. Em uma nova investida dos con- trários conheceram a prudência do artilheiro, mas deixaram-no estendido por morto; as carretas pas- saram por sobre clle c fracturaram-lhe as pernas. o EVANGELHO BA DESGRAÇA ^(^ Wò Pediu debaWe aos inimigos, qcaf uma l^grimii doestes oUios lao puros e mei- gos? Maior que todos o& poetas, mais do que Deus talvez, quem soube dar forma ao • sentimento d*a- quelle coração virginal em uma gota d'agQa> uma lagrima caida,. irmã gémea das que os anjos andam pelo mundo aparando em suas urnas crystalinas, para as engastarem como estrellas da noite saudosa no vácuo du firmamento. E ella cantava: O coração e os olhos São dois amantes Icaes, Quando o coração lem pena, J^ogo os olhos dão signaes. Ella espalhava ao vento os seus pezares, mas nin- guém os percebia; o avò alcgrava-se ao vêl-a sempre t'J2 , / UJÍi tos J-HANIASTICOS utilrar cn^casiTcanUndo ; mal saltia «operava um^atlracçSo irresistivel t Mal haja q^em- i}9o > fala verdade &'este episodio mais santo e verdadeiro de toda a existência* A pobre pequena n3o sal>ia estas subtilezas do peccado ; foi apoz os seus sentimentos, deixou*se adormecer ao som da voz que a ílludia, para acor- dar com a gargalhada fria e insultante no fundo de gm abysmo onde fdra atirada para sempre. A ale- gria que ató ali tivera, e era a sua principal bel- leza^ perdeu-a com a innocencia. Já nSo cantava ; andava silenciosa, desolada, como Da afflicçSo de uma dOr que se não exprime. A única pessoa que a amara verdadeiramente no mundo, seu avô, não tinha alma para perguntar-lhe o que a tra- ria assim oppressa. EUa envergonhava-se das lagrimas, represava-as, bebia-as I Uma vez, pela volta das trindades, o ve- ia 194 / • ', CONTOS PKANTASTICOS lho voltava do trabalho ; pousou a enxada ao canto da choça. Sentaram-se à mesa frugal ; não comiam preoccupados por uma angustia que se não atreviam a confessar um ao outro. A final o avô perguntou-lhe com uma doçura in- excedivel : — O que tens ? Ella prorompeu n'este instante em uma torrente de lagrimas irrepressiveis ; ia para falar, os soluços iniercorlaram-lhe a voz ; atirou-se ao pescoço do ve- lhinho, estreitou-o a si, sem poder falar. Era o maior golpe que o desgraçado soldado ev perimenlava, o ultimo que lhe abalava a vida. . Comprehendeu tudo. Traduziu as meias palavras da queixa dolorida, e soube que o Olho do seu protector fora o, seu algoz. Não podia accusal-o, vingar-se ; era uma horri- vel coUisão de deveres ! Ficou com a imníK)bilidade do espasmo ; hirlo^ como Bonifácio vm diante da multidão que ia para despedaçal-o. Sentado à mesa, com a mudez do assombro, assim permaneceu a noite toda, até que ao oulro dia deram com elie regelado, cadáver ! o EVANGELHO BA DESGRAÇA 195 'i/9 r ^ / / ) ^ O desespero das imprecações do desgraçado dá terra de Hus, dertado sobre o montaro, coberto de lepra, envergonhaiido-se da luz, desejando haver tido o sepulchro por berço e por seio que o escon- desse a podridão e os vermes da terra, todo este cicio da immensa agonia da alma que se alevanta a(è Deus e na sua fraqueza Ibe exprobra a des- igualdade da lucta, é uma das mais completas, a primeira manirestação do poema eterno da dôr. Acorrentado sobre os fraguedos que te serviram de leito, Prometheu vencido, a Força e a Violência guardaram os sarcasmos para a hora em que as extorsões convulsas não amedrontam os algozes ; deixaram-te aos abutres famintos, fustigado dos ventos, mas ao menos o turbilhão erguia o grito da ameaça ; o orvalho das noites refrescava-te o ar- dor da raiva, e o Oceano consolava-te porque te 196 CQÍÍTOS PHANTASnCOS •..y dizia : frometbeu, mesmo pregado contra essas ro- chas, sabes falar ainda com liberdade ! Deus banido, os outros deuses feriram-te porque nos alentaste a vida com a esperança ; se è de força o soflfrimento cumpra-se a fatalidade ! Elles não conheciam as do- res fundas, que se não vêem, que matam lenta, mente, as dores da alma, não as conheciam por isso não as infligiram. Âs grandes obras de arte, Job e Prometheu, foram os que Qzeram sentir no mundo as maiores dores ; mas a dôr moral, que os deuses antigos desconheceram, a dôr muda, essa é uma creação do homem, o maior inimigo do bomem. ' / \' ^ / / AQUELLA MASCAAA I -- A (}6r transformaste ! E^tâs desconhecido* Jà não tens o entendimento e vivacidade dos dias da tua alegria. Que desastre repentino te deu essa im- mobilidade do espanto? Desfolharam-se tão cedo as flores da tua primavera ; estão desbotadas as rosas de tua face, extincto o fogo d'esses olhos, que da- vam alma a tudo quanto dizias, A tua alma espan- dia-se, mostrava-se franca, como a verdade ; illumi- nava<*te o rosto, como um sol rutilante na immen- sidade tranquilla do mar. Eras exaltado, febril no que sentias; cada palavra tua era o esto de uma paixlo latente. Tinhas o segredo da fascinação, a mapànimidade do heroe, e a impertinência do ergo- tista; eras a um tempo seraphim e demónio, podias transportar ao sétimo ceu, ou atirar ao barathro a ^CONTOS PHANTAST1C08 } mulner qae te seguisse. Tiohas a coniiciencia da força e rias-te de todas as molberes, não te affligia o amor. Ainda era cedo para pensares n'isso, se é que se pensa quando nos atiramos ã luz que nos deslumbra. Comparavas a sociedade a um oceano revollo, e só tinhas em vista levar o teu baixel a porto seguro ; a estrella que te guiava, a monção fagueira que desfraldava aos pontos do ceu a tua vella branca que havia de ser, a não ser o amor? O amor era um pequeno movei para ti ; a ambição dava-te maiores impulsos, querias ser grande e do- minar, absorver os outros. De facto tinhas em ti um poder assimilador, reduzias os outros a ti. No meio dos caprichos da tua individualidade altiva, mostravas grandes verdades. Eras todo sensuali&ta, cercavas a vida de prazeres, mas só d'aqueUes que te proporcionavam os recursos inflnitos da intdfi- gencia. Para ti a arte era mais do que todas as sciencias do mundo, era a synthese suprema das faculdades do homem, porque é pela arte que eUe adquire a consciência de si. A acção justa, não a conhecias pela harmonia dos principies eternos da justiça, era preciso sobretudo que fosse capai de produzir uma obra d*arle. Todas as tuas posições eram escuipturaes, podiam-se reproduzir no mar- AQfJELLA MASCARA cansado a cima de orna enxerga alastrada en mansarda lobrega, depois das mais briUimles Ões, depois de ter aspirado o perfime qoaai ee- AOUBLULA MASCAUA lestial da gloria. Quantos n^aqttella noite nSo inte- jariaem a mini» tpmisâgaraç3o, sem saber que o ThabOT por onde subia lera semeado de cardos que me eosangimitavam. De um dia para o outro me vi cercado de gtoria ; falava-se em mim, queriam vôr*me, estava em moda, era recebido como prin* cipe, festejado, seguido. Explicavam a distracção conttoua que me tomava alheio a este culto perenne, pelo extasi da alma, pela abstrac(8o continua do eepirito pairando entre o ceu e a terra. Mo era as- sim. LembravaHQQie o passado, a miséria e o aban- dono do dia de bontem, e doia-me o contraste. A gloria só por si era pouco, nSo me saciava. Queria bastante gloria, mas para daUa. Tmfaa necessidade de encontrar uma pessoa no mundo que vivesse da minha vida. Para amar linha os typos da mhiha phaotasia^ desenhávamos a meu capricho, como.que* ria ; poros como Ophelia, dedicados como GriseH. dis, minhas, minhas como la Belle au bm dormant. Mas os dias corriam sem novidade de impressões, e os typos archangelicos que me cercavam, que evo- cava dos abysmos da imaginação ardente desampa* ravam-me como as ilibas do Rei Lear. Lembras-(e do quadro gigante traçado peia audácia de Shakes- peare, quando o velho pae, eom as acns fluctuando 202 / / /CONTOS PUANTASTICOS ao veDto da tempestade, no inverno, caminha deso- lado no seu abandono ? As filhas da minha imagi* nação desamparavam-me, e o tédio da alma era o deserto glacial em que me via perdido. Eu sentia em mim bastante fogo, muita vida, para dal-a a quem viesse compassiva e não soubesse mesmo confessar o seu amor. Havia de interpretar cada olhar, como uma aurora que se abre, cada sorriso como uma cataracta de luz que nos envolve e nos confunde no infmito. Creara um longo sonho de amor, bello, bello, quanto sabia que era impossível soltal-o no mundo. Por fim convenci-me tanto da verdade que o julgava possível. Conheces estes so- nhos dos nevoeiros do norte ; quando a ondioa se confunde na cerração, e o desejo vehemente dQ vel-a, de abraçal-a, começa pouco a pouco a dar-lbe forma, a vestil-a da realidade, até que um dia se sente nos braços d'aquelle queVtrouxe um mo- mento à existência pelo ardor da aspiração? Foi como encontrei a mulher que primeiro me falou de amor. A confiança d^ella fez-me grande. Disse me que não queria a minha gloria ; que antes me qoeria obscuro para ter de amar só a mim. Dei- xei-me levar por aquellas palavras que eram uma musica celeste; quando já não podia resistir a mim AQUELLA MASCARA '} ^ 203 mesmo, o orgulfao atacou-me de frente. Disse^he então que era Impossível o amor eotre dós. Rica, bella, n3o podia ser amada desinteressadamente, ao menos diante do poblico. Tinha vergonha que dissessem que a amava pela fortuna que possuía; esmagava-me esta idéa vil do senso oom^ mam. Desde esse instante procurei combater-lbe o sentimento puro que me revelara. Descobri-Ibe uma rival, com quem ella, apezar de todos os encantos, não poderia competir, que a deixaria na sombra a estiotar-se, emquanto se aureolava de luz, se dava à adoração de todos ; era a Arte, a Arte ! Quando lhe descobri esta atrocidade do egoísmo, em vez de desmaiar e desfallecer como aquella ingénua e li* mida donzelia que se prostra ante a magestade olym- pica de Goethe, repellida pela sua rival a Arte, que a lançou fora do seu templo, pelo contrario se en- laçou a mim com uma candura infantil, despreoc- cupada, beíjou-me em delírio, segredando-me com uma voz que se coava por mim, que me vencia : O que é a Arte sem a realidade t Depois disse-me com a voz languida, frouxa, impensada como a melodia de uma harpa eólia : « Eu bem sei que não tenho uma belleza que deslumbre ; nem ella existe senSo para exprimir algum sentimento. O que agora se K á04 '^ , jíONTOS PHANSASTICOS passa' em mitíi é ama rerdade, é por isso qoe as outras me chamam be Ua. Se eu tivesse uma cor- recção de formas como um mármore antigo, tioha medo, sabia que vão era amada por mim, «pie ne adoravam os contornos da plástica. Gosto mais de ser como sou, posso ser amada com mais verdade. ■ Sentia-me mais do que Deus ; èlle nunca teve uma adoração assim; tinha vontade de precipitar o tempo, e chamar-lhe minha. O amor ia crescendo de dia para dia. Diante da mulher que eu sonhara, era preciso mostrar-me grande para merecel-a. «Ew bem sei que a minha familia hade combater o nosso amor ; que importa ! Tenho medo de não poder ta- lar. Se me violentarem a casar com outro, teos^i- reito a reclamar quando quizeres o teu amor. «fi impossivel! Nunca. Essas palavras na bocca de qiiat* quer eram infames, abjectas ; ditas por tí, bSO uma dõr funda, a abnegação de quem não sabe resistir. Gu pensava em alcançar uma posição social i ensta de todos os esforços ; depois iria pedir a sua aio de esposa. O successo está em não precipitar o tempo. Confiava na minha vontade inabalável. NHioi instante desampararam-me todos os pianos de feli** cidade; vi-me^ô f Não sei mesmo a quem accose. Seria por Idrça filinha s^e eu podesse ser infe- AQ9CUJL II4SGARA "^^ ^ «2p5 me. Nkigami mentiu;. Perâi*a pafa semprõ ; en* tre nós ei^gftea^se o impossível. Eu nunca du- Tido do sêa amor; maa de qwe me serve agora, qoe é já Ii^abnente (te loutro homem? NSo s^as qoe eslava ji casada ? Não sei como explicar isto ! Ella tinfaa um primo, o moÂco herdeiro de um titulo, das grandes Tiqaesas de sua família. Era a única pessoa que restava, rachytioo, iofesado, com a doença hereditária» que foi levando um após um os seus irmãos. Voltara de uma viagem pela Eu- ropa ; elld mesmo chegara a esqueoer-se do praso fatal que lhe estava imposto pela doenga. Apaixo^ nou-se pela prima, pediu*a, dizendo que n3o queria deixar extinguisse o nome de sua casa. Accede- ram immediatamente. A victima innocente nSo pôde resistir a estes combates domésticos, de todos os dias; deixou-se levar, como o cordeiro do sacrifí- cio. Vi*a peia ultima vez no carro com o noivo : seuti^^me pequeno e envilecido, parece que me enterrava pelo cbSo. Depois não tive coragem de apparecer. Temia os epigrammas dos outros. O orgulho è o meu maioar algoz ; devora-me como um cancro. Sinto*me nmu» com vontade de esmagar os outros, não comprebendo a generosi- dade. Este desgosto fez uma alteração profunda em 506 ■ / ./"Ç^JPTOS PHANTASTICOS minha vida ; nunca mais posso falar verdade, por- que me mentiram no momento mais santo da vida. Sinio-me com a imbecilidi^de do assombro, estou estúpido ; sou um invólucro vasio, abandonado pela borboleta; como uma concha atirada do fundo do mar immenso a uma praia deserta. Apossasse de mim um desespero insoffrido ao lembrar-rae qae ainda sou creança, eque tenlio dearrastar uma ?tds erma de todas as esperanças. — Eu bem sei que não mentes, que nSo é ima- ginaria a tua dõr. Basta olhar para a tua face ; tem empanado o brilho da mocidade ; é como um l^o que vae perdendo a limpidez, e que as bafogcns mornas evaporam. Eu queria saber consolsr-te sem- te humilhar. Bem sei que é muito difficil. Não aehss a mínima distracção onde os outros encerram todos os seus prazere.s. Deixa que a tua indífferença te" leve. A mulher que amaste è hoje condessa, e abpe os seus salões aos amigos que festejam os annos de seu marido. Vem comigo. Ê um baile de mascaras. Ninguém te pôde descobrir ; eu apresenlote como um amigo intimo. Tu precisas cauterisar essa ago- Vum veslir-le. 1 AQUELLA VASGARA 207 II 7-( r PQla yolta das onze^ borts da iK>íte os âoi3 laasr caras foram inlrodusídos na sala do baile. Era mais vivo o c^tridoz das wabas ; as cores deslumbrantes, as pedraFias, os reflexos da luz, a confusão e o de* lisiOt OS; pares entaçados D'um volteio freDetico, tor- navam communicativa, convulsa tamanha alegria. Eetraram desapercebidos, sob dominó singelo. De- baixo de uma mascara de setim ninguém sabia: qw. andava escondido um grande desgosto ; a mas* cara servia mais para não deixar ver aos oatroi» aqiiella tristeza funda que não era para ali. Ia pe^^ \Qà salões olhando, seguindo, como quem caminha uas tre^'as. Cada vulto que passava, gracejando,, rindo dislraido, parecia-lhe uma larva errante n'um páramo deserto. Tanta mulher bella, tantas pala- vras de amor, vibradas tremendo, e nem uma som- bra leve de verdade. Como os bomens se alegram ^ quando sabem que estão entre si a mentir ! N'essa noite a condessa estava arrebatadora de en- canto ; acabara de tirar a mascara n'esse instante, e o calor quç lhe afogueava a face dava-lhe uma côr lasciva, de endoudecer ; o cançasso, os lábios entro 9 / 208 ) . w" ^ CONTOS PUANTASnCOS abertos, que esiavam como a peâir beijos, torna- vam-na languida, voluptuosa como a huri mais ideal dos sonhos do propheta. Caíam-ibe algumas tranças desprendidas no fragor da dança, sobre os hombros alâbastrinos, como n'uma travessura, como os ca- bellos de uraa odalisca que se alevanta do banho embalsamado e tépido. Uma das rosas da sua gri- nalda caiu casualmente no chão. O olhar mais ar- dente e expressivo de uma mulher, nao podia ser tão fatal como a queda d'aquella rosa. A mascara de selim aproximou-se mysteriosamente e ergueu-a do chão. A condessa seguiu-a vagarosamente com a vista, e esperava que a flor lhe fosse restituída. O mascara escondeu-a em si, e confundiu-se nos gru- pos que se cruzavam. Ninguém deu por isto. De- pois a orchestra rompeu com as notas estridentes e repentinas de uma contradança. — Digna-se V. Ex.* dar-me a honra de ser meu par? — Disse o mascara de setim aproximando-se levemente da condessa. — Com tanto que diga para que escondeu a rosa? — Se escondi a flor, temia que a calcassem aos pés. Custava-me tanto vér esmagada a imagem m^s triste de minha alma. — Apenas proferidas estas palavras com a voz abafada e tremula, a condessa AQUELLA MASCARA / ') • //Í09 ergueu-se de sabitOi hesitando se deveria ouvir uma GOQfideocia que a oooipromettfa ; o mascata de se* Um deu-lbe o braço e fm coilocar-se ao fuodo da sala dtaote do seu vis-a-vis, triumpbando d*aque]la irresoluçio. *— E o que pretende fa^er d'essa flor? — Guardal-a. — A sua determíoaçao leva-me a perguntar quem lhe deu direito para tanto ? — Nao devo dizel-o. — Ordeno \ — Não é jusio satisfazer todas as indiscrições, príDcipalmente quando... — Complete ! — Â ingenuidade de creança... — Diga tudo. — É irresponsável pelo passado. — Não comprebendo! — Retorquioa condessa fi- tando a mascara, procurando em vão surprebender debaixo d'ella quem seria capaz de falar assim. Um mixto de terror e de curiosidade embaraçava-a, não sabia o que devia fazer. Depois de alguns instantes de silencio, disse quasi em lagrimas:— Tenbo medo de si ! Oh dé-me essa flor. — Nunca t i4 210 ' UUNTOS PHANTASTICOS — Exijo l—tornou a condessa com a voz sumida, sentindo-se dominada pela fascinação do desconhe- cido. — Aqui eslá a rosa, — disse o mascara tirando do seio a flor quasi murcha. — É impossivel enlre- gal-a. Eu posso exigir mais em paga d'ella. Posso exigir ludo f É uma promessa inviolável como o jura- mento. Um dia a mulher que eu amava, no e&lremo de sua vertigem e loucura por mim, promelteu ir até onde eu estivesse, e ahi enlregar-se-me, se sou- besse que eu tinha a vida contada por instantes, e liavia de sair d'este mundo sem abraçal-a ao menos uma só vez como rainha. Os desgostos lem-me de- vorado lentamente a existência ; presinto a cada ins- tante em mim a frieza do sepulchro, e não soube ainda erguer a voz e reclamar a promessa fatal. Nem eu a quero ! Bastou-me ouvil-a para anticipar no mundo todas as venturas do empyreo. Deseja a rosa ainda? — O senhor dilacera-me ! — volveu a condessa com a voz dorida, c com uma delicadeza inexce- divel. — Se a flor que deixou cair está cheia de espi- nhos ! Nâo me atrevo a enlregal-a. Dou pela rosa a única idéa (jue me podia fíizer persuadir que ainda AQUELLA MASCARA ' ) ^ >* ^11 vivo! £ uma troca generosa I Acceita? Uni dia a mulher que eu amava, conheceu a desigualdade da nossa posição, disse-me, de um modo que só ella saberia dizer sem macular a ingenuidade de sua candura : — « Se me violentarem a casar com ou- tro, tens direito a reclamar quando quizeres o meu amor! » Seria uma infâmia vir lembrar-lhe uma pa- lavra proferida no momento mais exaltado da .pai- xSo, para perdel-a por um capricho. Nâo vale essa promessa. Agora ainda quer a flor ? — Oh, não! não! — accudiu a condessa repre- sando as lagrimas que lhe inundavam os olhos scio- tillantes. — Eu não sei o que quero agora ! Ninguém podia falar-me assim a não ser... Fale-me, eu es- tou conhecendo esta voz! É impossível que não seja í Não sabe como é horrível esta incerteza. Não o julgo capaz de atraiçoar-me ! Erga uma ponta da mascara, deixe-me vêl-o, a mim só, e fico des- cansada. — Eu não podia atraiçoal-a, nem mentir-lhe. Sou quem imagina ; vim para vêl-a pela ultima vez, por- que me sinto acabar ; estão contados os dias da mi- nha vida ; passo com as folhas doeste inverno. Bem o conheço e resigno-me. Não pensei que o primeiro amor que se tem na vida poderia ser Ião funesto. 2 lá ' COljfTOS PHANTASTICOS — 01), não fale assim, que me mata f Eu lenho remorsos de não ler luclado mais lempo ; não live culpa ; minha familia quiz a minha infelicidade. Eu amo-o porque nao sabe accusar-me. Quero vêl-o! já que não é possível mais. Tire por um instante a a mascara. É o que ouso pedir-lhe. — Eu tenho medo de arrancar a mascara ; está pregada com o suor frio que me escorre da fronte. Para que me quer ver ? Estou tão demudado ! Não sou o mesmo. Deve ter horror de mim, estou quasi esqueleto. — Por um instante só! quero vêl-o, afaste um pouco a mascara. — N*este instante a condessa vol- tou a face de aterrada. Contemplou de relance os estragos que uma dôr lenta fizera sobre as faces tão animadas que primeiro reflectiram os seus primei- ros rubores. Fez um esforço inaudito para suster-se; o mascara de selim deu-lhe novamente o braço e foi sental-a no mesmo logar onde tinha caido a rosa da grinalda; depois segredou-lhe umas palavras de abnegação e bondade : — Esta rosa é a primeira que hade reflorir sobre o meu sepulchro. — E saiu ; a noite ia remota ; os alvores da madrugada luctavam com as luzes baças das salas, o acordar da natureza com o ruído ver- AQUELLA MASCARA tiginoso da festa; o tédio e o cansaço traiiajh a desanímaçSo, como acaba sempre o baile mais es- plendido. III Apezar da impertinência de rachytico e da estupi- dez vinculada na saa descendência, o conde tratava perfeitamente sua mulher. A causa d'este respeito provinha da desigualdade, da força de intelligencia, da graça com que eila se tornava interessante para to- dos. Admiravam-n'a, e esta veneração reflectia-se um pouco sobreomarido.Oconde sentia que sua mu- lher lhe dava a importância que n9o tinha por si, e respeitava-a também. A alegria com que ella andava t ^entia-se mSe, tinha vontade de amar. Dera-lhe Deus um filho, uma alma por o seu amor. Parecia-Ihe que ao bei- jal-o, ao tel-o sobre os joelhos, se esqueceria de tudo, de um passado feliz, de uma uni3o forçada, do vasio da existência, mesmo d'aquella noite li- geira, em que contemplou as ruinas que fizera, e que lhe deixou recordações pungentes, infinitas. Depois, a lembrança do passado amor, o primeiro, o puro, o intimo, vinha unir-se a esta idèa risonha de ser mie, que a fazia esquecer*se de tudo ! Pobre J ^ OeoddniM uiIfiq tha BoaMuaper procsu. PreservationTechnologies